quarta-feira, 21 de junho de 2017

Danças gitanas, beijinhos e abraços

Hoje despedi-me da turminha de que falei aqui.
Parece-me que ainda foi no outro dia que ali cheguei e, afinal, criámos tantos laços, que já custa partir.
Hoje foi uma aula de encher o coração. Levei-lhes gomas, escrevi-lhes mensagens de despedida nos cadernos, recebi abraços, beijinhos e danças. 
Nem sempre foi fácil, mas sinto-me - e disse-lhes- muito orgulhosa do que conseguiram. 
Não obstante as contingências, desde falta de pontualidade e assiduidade a carências económicas diversas, mas principalmente a ambientes familiares complexos, abandonos, traumas e mais uma série de eteceteras...
Apesar de todo esse background e da própria dinâmica conflituosa da turma - não havia dia sem rixas, pragas ou ameaças -  muito crescemos, todos, ali.
Cumpriu-se o programa na totalidade, lemos livros em inglês, fizemos projectos manuais lindíssimos, ensaiamos canções e, acima de tudo, várias vezes tivemos de nos ajustar para viver em comum. Uso o plural porque aprendi muito com eles. Tive de me reinventar, muitas vezes, para levar o barco a bom porto. 
Agora já estávamos em sintonia:
Trabalhar, quando é para trabalhar - cada um ao seu ritmo e nas suas coisas ou a pares, porque um grupo destes dificilmente responderá como "turma" 
E  conversar, desabafar, debater, negociar... muito, porque assim fazia parte.

Querem um exemplo?

Uma manhã, chega lá a Bernardete e diz-me:
"Professora, a partir do dia dezoito já não sou sua aluna..."
"Oh, então porquê?"
"Porque o meu pai recebeu um papel do tribunal a dizer que temos de sair do terreno até essa data ou ele vai preso. Já viu? Acha bem? Moro lá desde que nasci..."

Olho-a profundamente nos olhos e sei que gosta de mim e que espera empatia com o drama que está a viver, mas em segundos decido que ela também deve ouvir, da parte de alguém que respeita, a outra versão da história. Digo-lhe, com suavidade, e medindo as palavras como quem pisa brasas a ferver.

"Sabes, minha querida, eu entendo que isso seja difícil para a tua família, que vos custe mudar de casa, mas o terreno pertence a alguém e essa pessoa pode estar a precisar dele..."

Ela, olhando-me com aqueles olhos amendoados gigantes, a implorar anuência, compaixão:
"Já viu, acha bem? Despejar uma família? E a senhora fazia isso, diga lá, era capaz de fazer isso?"

Comoveu-me aquela criança, a ver em mim uma bondade que não tenho, a supor-me virtuosa e piedosa, a ler toda aquela situação à luz de uma cultura tão distante da minha... hesitei, mas achei que era o momento certo para estimular o espírito crítico da menina.

"Olha, não sei, depende. Se o terreno fosse meu e eu precisasse dele, por exemplo, para fazer uma casa para o meu filho, tinha de conversar convosco para arranjar uma solução, não é? "

Toda a expressão facial dela mudou. Durante uns instantes, sei que ela seguiu o meu raciocínio e aquilo lhe fez sentido.

"Nós não sabemos se a senhora precisa da terra, ou de vendê-la para ganhar dinheiro para qualquer coisa que lhe faça falta, sei lá..."

Disparatou.
"Ah! Precisa, precisa! Precisa agora! Ela é rica! Num lhe interessa nada; nós é que temos de ir viver para outro sítio ou levam o meu pai para a prisão...onde é que já se viu? C'os seus mortos!"

Mas eu sei. Que, durante uns segundos, houve ali uma centelha que brilhou. Ela viu as coisas de outra perspectiva e ouviu-me. Foram precisos muitos meses  para que me ouvisse desta forma, mas consegui.

Hoje, não me queriam deixar partir. Agarradas a mim  como se sempre tivesse sido fácil. Não foi. Tive de bater o pé, muitas vezes. Dar com uma mão e tirar com outra. 

Guardo no coração aquelas histórias difíceis e sinto orgulho no trabalho que desenvolveram, desenvolvemos.

Para mim, confirmação da grande aprendizagem de vida que me serve pessoal e profissionalmente: Todos andamos no mundo à procura de validação. Se respeitarmos e validarmos o outro, seremos respeitados também.  

Depois de um ano a ouvir pragas - Uma benção, neste recado que transcrevo: 
" O mais engraçado foi não ter precisado de um beijo para gostar tanto de si!
O Espírito do senhor sempre a conduzirá, segure na mão dele e vai!"





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