terça-feira, 29 de outubro de 2019

Tesoura realmente cortante

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Faço coadjuvação numa turma grande, que acolheu um menino particular.
Coadjuvação significa que outro colega dá a aula e eu estou lá para ajudar. 

Neste caso, vou dando um empurrãozinho aqui e ali aos meninos com dificuldades, mas sento-me, maioritariamente, ao lado da cadeira de rodas do  M e vou monitorizando o trabalho dele a inglês. 

Depois de duas ou três aulas, logo percebemos que o M é perspicaz, desenrascado e que tem um vocabulário de inglês que, de momento, prescindiria do meu apoio, mas a verdade é que eu gosto mesmo de estar ali com ele e é ele quem me ensina tanto! 

É um menino bem humorado, persistente, que insiste em fazer as suas tarefas sozinho, portanto eu vou acompanhando e vamos arrancando sorrisos um do outro, no nosso cantinho, lá atrás, onde resolvemos os exercícios todos e ainda brincamos muito com uns ímanes que eu trago no estojo.

Na verdade, na mesa ao lado, senta-se um outro, que recebi no ano passado, vindo do Brasil e mal sabia ler. Progrediu muito, mas apesar de estar no terceiro ano, ainda luta com as letras. E outro que também veio daqueles lados do Atlântico e cujos pais trabalham nuns turnos malucos, razão pela qual ninguém lhe vigia as horas de sono e ele vem sonolento para a aula. A colega de carteira, de uma beleza a lembrar ascendência amazónica, esteve ali dois meses a escutar o txitxo sem trazer livros nem cadernos, por mais que apelássemos a que arranjasse, pelo menos, um cadernito qualquer. 

Por tudo isto, como se vê, há sempre pano para mangas, embora eu me debruce mais no meu M.

O M era um miúdo como os meus filhos. Há um ano apanhou um vírus e ficou assim. Com a fala algo comprometida, na cadeira, sem mover a mão direita, de fralda. 

No outro dia estava a aparar uma ficha para ele colar no caderno e ele, como de costume, pediu-me para ser ele a fazê-lo. Se calhar erradamente, mas com receio que se magoasse, disse-lhe que eu ajudava e que podia pousar a tesoura. Pelo contrário, ficou com a tesoura na mão, a fixá-la algo demoradamente. Estranhei, pois costuma ser muito colaborante.
Insisti que podia magoar-se. Deu voz ao  que lhe passava na cabeça.
"Dantes, eu era capaz de recortar umas formas numa folha dobrada a meio e depois, quando se abria ficava assim tudo tipo rendilhado."
Disfarcei. "Sério? Que bonito! E isso é difícil!"
E ele:"Dantes!"

Nunca tinha visto uma tesoura cortar tão fundo.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Perplexidades

O cancro é fodido,
ponto. 
Morrer precocemente, 
deixando filhos pequenos e uma mulher que ama, 
é brutal, incongruente, chocante, dilacerante e absolutamente insano. 

Não faz sentido nenhum. Estamos todos de acordo.

Justiça divina, se a há, é muitíssimo ininteligível nestes momentos. Um gajo zanga-se com Deus.

Ainda hoje, ao pé do Náutico, na Póvoa, vi um farrapo humano, um concentrado de fatalidades e expoente máximo de probabilidades de morte- toxicodependente, escanzelado, tuberculoso, frágil, a cair... e que resiste. Não é que a vida humana não me mereça respeito, até nessas formas limites, mas dá que pensar: como é que esta pessoa se aguenta e o meu vizinho do lado, sem comportamentos de risco, sob um tecto, com alimentação regular, higiene e cuidados de saúde... sucumbe?

É pá! 
Da-se!

E, todavia, esta tragédia aproximar-me de alguém, fazer-me sentir sentido, fazer-me sentir pertinente nesta centelha de tempo e espaço que o acaso nos fez vivenciar... a dor trazer-me uma amiga...

A minha cabeça não entende, mas o meu coração enche-se de amor e sente uma razão para ali estar.
 Não compreendo, mas mesmo assim, Aceito e agradeço.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Camisola (pouco) interior

Resultado de imagem para white sweater girl, clipartTransitar de uma escola para a outra, a tentar saborear o calor outonal, mas com a cabeça a martelar mensagens e alertas. Hoje, especialmente, aquela camisola interior

Miro uma montra de esguelha para fugir ao assunto; que giro vestido, dava-me jeito umas sapatilhas destas da moda, agora que ando tanto a pé e aquela saia de pregas, que linda!... mas este mês não convém, este mês foi renovar o guarda-roupa dos miúdos, passam o verão semi-nus e descalços, começa a escola, nada lhes serve, raisparta! Como farão as famílias com muitos... e com menos... e volta-me à cabeça aquela camisola interior

Estavam quase trinta graus; eram três da tarde, quatro?, cruzo-me com as fedelhas no recreio. 
Meto conversa, gabo as sapatilhas de uma. Diz-me que são Sketchers. Gosto, são fashion!, digo-lhe. As outras reclamam atenção, esticam a ponta do pé, e as minhas txitxa?, 
tenho de adorar todas as da roda, vou percorrendo com os olhos: as tuas também são fixes, e estas, pretas, que must! Chega a vez dela e ela ri-se e desculpa-se "as minhas são cagadas" - digo que é normal, são crianças, é de brincar e que faz muito bem em brincar e ser feliz.

Aquilo passa. Vou dar uma aula.  Sem me lembrar mais de nada. Sem ter consciência.

Mais tarde, quando a vejo na aula, reparo

A sala de aula transpira, o sol bate de chapa e está mesmo abafado, apesar das janelas escancaradas. Ela vem ter comigo à porta, aos pinotes por me ver (!) e só aí reparo na 
camisola interior surrada e curta nas mangas. 
Pergunto se não tem calor, se não trouxe mais nada por baixo (às vezes são eles que não têm noção da temperatura, nem discernimento para vestir ou despir de acordo). Diz-me que não e gruda-se num abraço.

A meio da aula, já não me lembro de nada disto e zango-me muito com ela. Porque me pede uma caneta para escrever e percebo que ainda não fez nada nesta aula que já vai a meio. 
E os outros começam de acusa-cristos (que nada me agrada) a explicar que ela tem estojo na mochila, mas não tira por preguiça.
Vou ter com ela, 
averiguar se há ou não estojo 
e só aí, ao espreitar para a mochila muito gasta e muito usada
percebo!

Tem estojo, sim, está ali ao fundo
tem vergonha
não é novo
nem colorido
nem tem nenhuma bonecada de princesa e heróis
do marketing didático  pago a peso de ouro.
Tem vergonha.

De repente, tenho EU vergonha de lhe exigir fosse o que fosse.
De repente, o estojo rima com as sapatilhas "cagadas".
Sapatilhas que são cagadas, não que estão.
De repente, estojo escondido e sapatilhas cagadas
rimam com camisola interior surrada.

E eu não gosto da rima que me martela o cérebro até estas horas da noite.


terça-feira, 1 de outubro de 2019

'dnhêrónesto

Imagem relacionadaEstou sentada à secretária adiantando o sumário 
enquanto eles vão entrando às pinguinhas, 
porque foi intervalo de almoço, 
estiveram a correr muito 
e agora se lembram 
que querem beber água, 
ir à casa de banho 
ou que têm de lavar a cara e as mãos que a txitxa não gosta que entrem a escorrer suor.


Espetam-me um cachucho gigante,
a brilhar no ouro e na pedra rubi,
mesmo em frente do nariz:

"Gostas da minha prenda txitxa?"


De repente, não sei bem o que dizer para ser honesta sem  ofender o meu ciganito preferido,
mas rapidamente me lembro que na cultura dele valorizam muito aquele tipo de jóias e, na verdade, até lhe fica bem.

"Uau! Que grande! Fica-te mesmo bem!"

"Foi o meu avô que me deu nos anos e este não é da droga!"


                                                                                                                                         #falamdemais