quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Síndrome do primeiro dia de aulas

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É um fenómeno que não deixa de me surpreender ano após ano!
Seja porque
ainda trazem os horários trocados e vêm meios ensonados,
ou porque
estão a ver no que a coisa dá,
ou porque
tinham saudades da escola
ou devido
às admoestações prévias dos paizinhos lá em casa
a ler a cartilha do este-ano-não-vai-ser-o-mesmo-fado-do-ano-passado-põe-te-fino!
ou simplesmente porque
as criaturas efectivamente trazem lá no fundo das almas uma última gota de motivação e vontade de aprender...


A verdade é que o primeiro dia de aulas nos deixa (me deixa?) sempre a doce ilusão que, no presente ano lectivo, fomos brindados com uma série de grupos fabulosos, os alfas da constelação de turmas do agrupamento, o paraíso inefável de alunos educados, atentos, cooperantes, participativos e motivados.

Resultado de imagem para first day class, clipartEles...
entram ordeiros.
Sorriem.
Sentam-se sem arrastar (muito) as cadeiras.
Esbugalham os olhos.
Escutam avidamente.
Segredam palavras de ordem a quem vem mais distraído ("cala-te, olha a professora!")
Trazem materiais reluzentes e eles próprios...
vêm penteadinhos e aprumados. 
Pedem licença para falar,
levantam o braço e...
esperam!

É por tudo isso que, ao contrário da maioria dos colegas, eu nunca deixo sair mais cedo na aula de apresentação. Todos actuamos em benefício próprio, verdade seja dita. Alguns colegas, pelo benefício de se livrarem deles; eu, pelo gozo que aquilo me dá. Nesse dia têm vontade de aprender. Isso é extraordinário, portanto, parece-me um contra-senso desperdiçá-lo.
(Até porque, tempos mais tarde, é essa a minha arma de arremesso. Lembram-se como nos divertimos naquela aula? Como deu tempo para tudo? Cantar, fazer mímica e jogos?)

Pelo que, para mim, a primeira semana de aulas é sempre super-fixe. Sinto-me realizada como professora, sinto que consigo ensinar.

Depois já têm alguma confiança connosco e acharam-nos tão simpáticas nas primeiras aulas que confundem isso com o poderem esticar a corda...
(Como diz a minha amiga Carla, "é à vontade, mas não é à vontadinha!")
e então a gente tem de se zangar e estabelecer limites e recordar que estamos ali para trabalhar, de preferência de forma divertida, mas mantendo o foco. Na gíria docente alguém dizia "difícil é sentá-los!"

Efectivamente, após a síndrome inicial, eles saram e tornam-se... alunos! É a roda do silêncio, por favor; já copiaste? posso apagar? Raquel vira-te para a frente; Zézinho toca a trabalhar; Margarida não estás a fazer o que te pedi; estão prontos?por favor, tomem nota, etc, etc - eu isto tudo em duas línguas e com gestos e desenhos para que me entendam!


 Ufa! Quando é que começa o ano lectivo outra vez?

I'll prove you wrong!

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Os senhores ministros, (nenhum em particular, todos em geral) que é como quem diz as pessoas dos gabinetes, grande parte da comunicação social e mesmo os comuns cidadãos de classe média-alta, é que me deviam ter acompanhado a uma certa escolinha básica, que nos brinda com roupas penduradas no gradeamento lateral. A escola é geminada com as caravanas, está literalmente implantada no seio de uma comunidade de etnia cigana, onde acaba o asfalto e se encontra o acampamento em terra batida. 
Nunca tinha visto nada assim. Qual era a ideia? Criar igualdade de oportunidades no acesso à educação? Ou gerar uma espécie de gueto que separasse o trigo do joio? Dá que pensar.

Assim foi como me falaram da escolinha, antes mesmo de lá ir. A "escolinha dos ciganos". Está rotulada, nada a fazer. De facto, há efectivamente muitos calós, muitos meninos de etnia, mas nem o epíteto é preciso, porque existem também crianças de uma instituição de acolhimento (IPSS) e miúdos que simplesmente habitam nos bairros circundantes. Mas, adiante.



A reunião de encarregados fez-se com a presença de um senhor agente. Foi a primeira vez que tal me aconteceu. Claro está que o guarda Alfredo (nome fictício) estava em representação da Escola Segura, o programa de apoio às escolas resultante da parceria entre o Ministério da Administração Interna e o Ministério da Educação. Muito útil, esse programa, a meu ver.  A presença policial ocasional (ou, em certos casos em permanência) junto à entrada das escolas veio beneficiar em muito o ambiente escolar. Na prevenção em áreas tão vastas como a segurança rodoviária (respeito pelas passadeiras, utilização de cadeirinhas, etc), os consumos, o absentismo e a delinquência juvenil. Não é, no entanto, esse o meu ponto hoje. Onde quero chegar é que este elemento estava ali presente para alertar os encarregados de educação, aqueles encarregados de educação, para a obrigatoriedade da frequência escolar (ao que parece, a assiduidade é um ponto crítico) e também para a vigilância das mochilas das crianças. Para que não trouxessem objectos perigosos ou mesmo armas para a escola. Senti-me apreensiva com este aspecto, não posso negar. Afinal, estamos a falar de meninos do primeiro ciclo...


Por natureza, arrepiam-me os chavões, os preconceitos, as ideias pré-concebidas. 
Por forma que, quando alguém me vem (naturalmente com boas intenções) alertar, no início do ano lectivo, para esta ou aquela situação, etiquetando alunos e compartimentando comportamentos, eu tenho tendência para fazer um meio sorriso cordial, agradecer e acenar afirmativamente ao relambório - enquanto o meu coração dispara e o meu cérebro me envia mensagens do género:
"pessoa pessimista"; "que exagero!"; "está visivelmente cansada e farta disto"; "técnico desmotivado e a precisar de reconhecimento social"; "desiludiu-se com algum deles", mas, acima de tudo: 
"I'll prove you wrong" (vou provar que estás errado)
Por alguma razão o meu pai me apelidava de defensora das causas perdidas. MESMO.
E, portanto, lá encarei a situação afastando as cobras e lagartos com que ma pintaram e fui para aquela escola como vou para todas as outras. Imbuída de vontade de trabalhar, energia, motivação, boa disposição e paciência (mantra para estreantes no primeiro ciclo: são crianças, Marta; são crianças!!!!)

A verdade é que, passado o síndrome do primeiro dia de aulas (do qual falei neste post) o verniz começou a estalar. Como hei-de explicar? Não há-de ser a tempestade no copo de água que me pintaram, mas também não será para navegar em águas serenas. Não é que me tenha rendido aos Velhos do Restelo das pedagogias balofas e do autoritarismo gratuito ("com estes tem de falar grosso desde o início,não os deixe trepar, professora, se não, não faz mais nada com eles!" - disse-me alguém após ouvir a turma, na primeira aula, a cantar a canção do "Hello!").
Não é que tenha validado esses azedumes. Cá dentro só ressoava um "I know better" (deixe-me cá, eu é que sei). Não é que lhes tenha dado razão.
Não é isso.
Só que, de certa forma, consigo perceber o estereótipo. Está realmente tudo lá. Os cabelos compridos e povoados, as unhas mal higienizadas, o pedinchanço ("posso ficar com isto? não me arranja uma?") a lábia, a xico-espertice, o gamanço. ("Devolve esses lápis à tua colega que são dela"; "Também não são dela que os fanou!"). A linguagem. A agressividade entre pares como forma de comunicação. Tudo. 

Não me parece, porém, razão para desistir, digo, desinvestir. Pelo contrário. Seria perpetuar as desigualdades. Parece-me, pelo contrário, que já escolhi a turma que vai cantar as Christmas Carrols na festa de natal da escola sede.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Boda queimada, boda lixada

The bride on fire.
Jenny Chang/ BuzzFeed

O meu casamento ardeu.
Não quero dizer metaforicamente.
Quero dizer literalmente.
No dia da celebração, o espaço onde decidimos comemorar a boda incendiou-se.
Tivemos que fugir todos a correr. Convidados, nubentes, funcionários, animadores, até o palhaço...
O palhaço do dono da herdade, que no dia a seguir me quis cobrar na mesma o serviço. Pelo menos as entradas, alegava, sempre servimos lagosta e queijo da serra! Palhaço mais palhaço que o palhaço!
Esse, ao menos, o verdadeiro, ainda juntou as crianças todas no comboinho da quinta, que, pela primeira vez na vida fez uma viagem verdadeiramente útil - a que salvou aqueles miúdos, não apenas do fogo, mas do alarido, do trauma e do medo.
O Patati.
A esse, paguei-lhe.
Assim que avistou a nuvem de fumo negro, abriu o sorriso de gesso branco, apontou o nariz vermelho na direcção oposta, activou a fantasia e resgatou-os a todos para o mundo da magia. A cantar e a bater palmas, muito alto, muito alto
( "CÁ-DÁ VEX MAIJATO CRIANXADA! O PATATI QUER ÓVIR!")
as crianças encarreiraram para o comboinho para irem capturar duendes do outro lado do lago, para os lados da floresta.
Para elas, fez-se magia.
Bendito! Houve, pelo menos alguém que nessa tarde manteve a ilusão.

Eu não.
Tentaram consolar-me com adjectivos pomposos.
Um "casamento escaldante"; um "dia inesquecível"; uma "celebração única".
Respondi-lhes com a minha apropriação do dito proverbial "Boda molhada, boda abençoada."
Boda queimada, boda lixada.

Tentaram animar-me.
Que percebiam a minha mágoa, um dia tão particular na nossa vida, uma data a celebrar, uma festa preparada ao pormenor, um espaço seleccionado com rigor...
mas que afinal todos estavam bem, não havia danos.

Sei-o eu. Dos danos. Dos prejuízos.
E não falo da boda. Falo do matrimónio.

O meu casamento ardeu.
Ao fim e ao cabo também literalmente.

Sabia-o. Sabia-o ao repetir, compulsivamente, vestido chamuscado e encharcado, corpo trémulo e a balançar para a frente e para trás no banco da limusina do resgate, cobertor à volta dos ombros, rímel a escorrer, dentes rangentes:  
Boda queimada, boda lixada. Boda queimada, boda lixada. Boda queimada, boda lixada.

Sabia-o, antes mesmo, no minuto em que virei a esquina de acesso à piscina e vi as labaredas.
Não tive dúvida quando o André alertou a recepcionista para as chamas.
Sabia que não era apenas um incidente. Era o meu casamento a arder.

Não precisei de esperar pelos resultados das perícias policiais para ter a certeza da tragédia.
A imprensa deu conta de que o incêndio teve início nas camaratas de estudantes anexas ao empreendimento hoteleiro. Não foi preciso ouvir muitas testemunhas para que os adolescentes revelassem os descuidos e leviandades da juventude. Cigarros, álcool, alcatifas. Acuada, em jeito de alibi, uma miúda revelou estar com o noivo no quarto e, portanto, nada ter a ver com a tragédia.
Nada!

sábado, 17 de setembro de 2016

É bom ser primário!


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Eu a dar as indicações naturais de início de ano lectivo - materiais, regras, esclarecimentos. Ela a levantar o braço, interrompendo-me o raciocínio.
- "Professora..."
- "Diz"
- "És bonita!"

E pronto. 
A espontaneidade a fazer tudo valer a pena!

Dois dias de um outro universo. 
Como é que eu vos hei-de explicar? 
É um outro universo. 
Não são Cátias Vanessas de calças justas pelo tornozelo e tops a revelar o umbigo, nem Joões Miguéis de headphones gigantes na cabeça, a empurrar as Eastpaks pela sala adentro... 
São leggings cor-de-rosa e bandeletes com lacinhos, e estojos com bonequinhos, e óculos pequeninos e coloridos em rostos mimosos!São pessoas pequenas com vozes grandes, que não falam, berram e que não filtram... são!
Um universo em que há salas de aula com cartazes apelativos, quadros com a data no topo, escolinhas à antiga portuguesa, em granito e com baloiços no recreio! No recreio há algazarra e leite achocolatado, na sala de aula há cadeiras com pernitas penduradas sem chegar ao chão e lagrimitas nos olhos dos mais frágeis, porque são difíceis os primeiros dias longe do mimo dos pais!

Eles...
tratam-me por TU, 
("tens de carregar naquele botão " - para ligar o quadro interactivo)
Eles...
não entendem a minha caligrafia (mas como raio é que se fazia aquele agá desenhado elaborado?),
("que letra é aquela'")
Eles...
perguntam-me se é para copiar,
se se escreve a lápis ou a caneta,
se a caneta é azul ou preta,
se é no início ou no centro da linha,
e se deixam linhas de intervalo.
Eles...
Dizem-me que se enganaram, naquela voz melosa:
"Professooooooraaaaa, eu enganeeeeiiiiiiii-me!"
Informam-me que já acabaram,
E pedem-me ajuda...
para recortar
para colar
para decidir a cor do desenho
e afins.

Não estou habituada a que me prestem tanta atenção na aula!(LOL!) E tudo isso me faz confusão. Tenho de me ajustar. Mas há um ponto em que nos encontramos. Têm curiosidade e energia e espontaneidade. Gosto disso.

E de-mo-ram. Demooooooooraaaaaammm. De. Mo. Ram.
A escrever.
Porque aprendem num ápice uma canção. Com coreografia e tudo. 
Também gosto disso.

Em dois dias tive direito a tudo. Elogios. Desenhos oferecidos no fim da aula. Abraços no corredor. Euforia na biblioteca:
 "Gosto de ti, professora!"; 
"Como? Só me viste uma vez?!"
"Mas gosto!"

Não tem explicação. É assim. Primário.
É bom ser primário!



terça-feira, 13 de setembro de 2016

De volta à infância

Resultado de imagem para primary teaching, clipartO presente ano lectivo marca uma mudança na minha carreira.  
 Efectivei no grupo 120, o que significa que, após dezasseis anos de docência no terceiro ciclo e secundário, vou exercer no primeiro ciclo. Por conseguinte, vou deixar de lidar com jovens e adolescentes e passar a trabalhar com crianças.

Não posso mentir. Sinto-me expectante, mas também um pouco apreensiva (o que é natural a qualquer processo de mudança). 

Quem me conhece sabe que terei de modificar não apenas as metodologias e estratégias de ensino, mas também a minha forma de comunicar. 
Terei de moderar o meu humor sarcástico, as finas ironias, os comentários desconcertantes, que tanto me ajudavam com os adolescentes. As crianças não comunicam a esse nível. (os meus filhos, sim -por razões óbvias!!!) No geral, as crianças não entendem duplos sentidos, assumem literalmente o que dizemos. Estão na fase do concreto, é-lhes difícil abstrair. Aqui reside a minha única reserva. 

Quanto ao resto, tenho muito boas expectativas. Reconheço que estou apetrechada com a vivacidade, a energia, o gosto pelas canções, pela mímica, pelos jogos e pelo drama (role playing) necessários à faixa etária. Estou preparada para salas de aula cheias de... calor humano, meninos que vêm a correr pelos corredores fora, que entram aos trambolhões, a transpirar do recreio, que demoram a sentar-se e a organizar-se, que querem falar ao mesmo tempo, que se distraem e que implicam uns com os outros por causa de ninharias que, para eles, são o mundo! "Ele roubou-me o estojo!"; "Professora, ela não me empresta o pink para eu pintar!"
Pintar! Vou voltar ao reino das pinturas, das manualidades, do lúdico, das histórias e das canções... não é mágico?

Argumentam-me contras.
Há quem me diga,

 ah e tal, vais estranhar, não tem nada a ver, não te vais sentir realizada.
Sempre considerei que um bom professor é aquele que é flexível e que se adapta  a diferentes grupos. Da mesma forma que nunca me senti minorizada por trabalhar com cursos profissionais ou com turmas difíceis. Pelo contrário, o desafio é maior e o mérito proporcional à dificuldade da função. Os bons alunos aprendem sozinhos. Os que têm dificuldades ou estão desmotivados é que revelam a arte do professor. Sentir-me-ei sempre realizada se os miúdos evoluírem nas aprendizagens, se se vincularem a mim e se se desenvolverem como pessoas.

olha que não é a mesma coisa, vais ser professora primária...
 Isso quer dizer o quê, exactamente? Se me estão a insinuar algum tipo de desprestígio social... umpf! As if a docência fosse valorizada... à excepção, talvez, do ensino superior, nenhum nível de ensino é profusamente valorizado.  Isso incomoda-me tanto que até estou alimentando a ideia de usar bata!!!

vais ter de andar de escola em escola, a saltitar
também não apanho os vícios de nenhuma, nem tenho tempo para me chatear com os colegas ... e para quem já teve de calcorrear 160km por dia para trabalhar...

os conteúdos são muito básicos, tem de ser tudo muito simples...
óptimo. Menos trabalho na preparação de aulas e na correcção de testes. Menos trabalho equivale a mais tempo para mim. Para acompanhar os meus filhos. Para ler, escrever e ir ao ginásio. É desta que escrevo um romance. Ou me torno campeã olímpica! 

Enfim, a parca experiência que tive neste nível de ensino traz-me boas recordações. 
Meninos  que gostam de se movimentar na sala de aula, que gostam de jogos, que gostam de cantar, de pintar, de ouvir e de contar histórias, 
que (ainda) gostam de aprender 
e que até nos querem dar beijinhos...

Sou capaz de me adaptar aos mimos...