Bem Vindos ao "Marta à vista", o blog onde podem ler sobre o que a Marta avista e avistar a Marta. Talvez mais aquilo do que isto, se é que não são a mesma coisa!
Esteve um fim de semana tão lindo, este que antecedeu o Natal!
Debaixo de um solinho ameno, depois de tantos dias de chuva,
passeei com os meus filhos pela marginal,
fizemos umas comprinhas no comércio tradicional,
ao som de musiquinhas da época,
sem filas,
sem consumismo exacerbado,
sem a voragem diabólica em que se vive esta quadra nas grandes cidades;
visitámos a duendelândia e andámos no trenó virtual,
vimos pais natal a fazer paddle no Cávado,
vimos um Pai Natal a sobrevoar a praia em parapente!
Observámos garças, gaivotas e outras aves marinhas que só o Pedro sabe nomear,
apanhámos seixos na praia que a Maria gosta de pintar,
fizemos marmelada para oferecer,
embrulhámos prendinhas com carinho,
a Mary andou de patins,
fomos à missa abençoar o nosso menino Jesus e trouxemo-lo para casa para nos proteger,
enchemos a casa de cheirinho a canela e vinho do porto na confecção da doçaria,
vimos o ET de lágrima no olho,
deixámos o pôr do sol que prateava as águas do rio dourar-nos a alma.
É tão verdade que as melhores coisas na vida são de borla,
assim saibamos vê-las com olhos de ver.
Grata por tantas bençãos!
As prendas que não têm preço, são, cada vez mais, as que mais me preenchem a alma!
Lá na escola recebemos um contingente do lado de lá do oceano, maioritariamente famílias brasileiras, mas também algumas venezuelanas, todos à procura de alguma paz e prosperidade, que as terras-natais deixaram de dar.
Os currículos são diferentes, o calendário lectivo também, de forma que chegam "tarde e mal" e a escola decidiu - e muito bem, a meu ver - oferecer-lhes aulas extra, uma oportunidade para trabalharem um pouquinho esta semana, para liquidarem essas lacunas e darem o pulinho para acompanhar os colegas, no próximo período.
De maneiras que...
lá estivemos nós, na escolinha deserta, a pôr a escrita em dia
com boa disposição, muito afinco e carinho.
Um grupo que vem
com vontade de trabalhar,
que pede mais ("dever dji cása, num taim não?")
e que me mima tanto na sua língua:
"Oh, Txía! Cê tá linda hoiji!"
Explicar que não chamamos tia e socorrer-me de todas as expressões idiomáticas que me ficaram dos bons tempos em que "assistia novela".
Digo "num isquenta!",
quando ficam aflitos com tanta matéria
"Danou-se"
quando falham num exercício
ou:
"Legau!"
quando acertam!
E eles riem e continuamos.
"Sê esquecéu seu caderno? Uai! Qui saco!"
"num veim qui num teim"
"num m'inrola qui não sô onda!"
... e por aí fora.
Vejam lá a minha sorte:
Até tenho uma que se chama, adivinhem, "Gábriéééla!"
Eu acho que das duas, uma!
Ou eu tenho uma pronúncia tão má quanto a deles em inglês
ou eu falo assim um brasileiro antigo,
do estilo do que falavam as avós deles na roça...
que, às vezes, nem assim me entendem!
MAIS, dji um jeitu ô du ôtro,
Á coisa vai!
De todos, há uma menina.
Uma formiguinha.
Labuta, labuta, labuta,
como se não houvesse amanhã.
É a aluna perfeita.
Educada, focada, inteligente, sensível, com um sorriso no rosto.
Deu-me a melhor prenda do ano.
Escrito por ela, com palavras de coração.
Uma benção para o ano que se avizinha.
"Que Deus te abençoe
e te dê um ano feliz e abençoado...
Que seus desejos se realizem
e que em sua vida haja
amor, paz e amizade!
Bom Natal e Feliz Ano Novo!"
Comoveu-me, a Natália.
A Natália nem sabe como eram exactamente estas as palavras que eu precisava de ouvir!
Gente simpática, educada, de bom trato, bom humor, piadas trocadas na areia, crianças que partilham brinquedos entre toldos e que levamos à àgua ao mesmo tempo, para o chapinhar ser mais largo enquanto os adultos desabafam aquelas arrelias que nos completam as vidas: o meu faz birra, aquele não come a sopa, a minha tem pancada com roupa cor de rosa e por aí vai.
Era uma vez a gente ver crescer os filhos uns dos outros, sazonalmente, mas com carinho e saudade, voltando à mesma praia, todos os anos, como quem regressa a casa, o porto seguro dos nossos afectos, para lavar com àgua salgada a poeira de um ano inteiro a trabalhar!
E, ver chegar filhos novos, desta vez a bebé rechonchudinha a mamar consolada. Olheiras de cansaço e sorrisos de alegria, a família a crescer, que bom partilhar destas conquistas, os amigos que têm um menino e agora uma menina!
Era uma vez o ano seguinte e os amigos que não voltam.
A Isa, a bebé rechonchuda, teve uma febre nesse inverno e a família entrou no inferno. O estado clínico da Ísis precipitou-se, convulsões atrás de convulsões, que ninguém conseguia dominar, como um fogo - FIRE - a queimar o sossego e a felicidade fotográfica daquela família.
Febrile Infection-Related Epilepsy Syndrome,
uma doença raríssima, que levou meses infernais a controlar
é o nome do fogo.
O outro, de que fala este livro e de que vos venho falar,
é o de uma mãe que leva tudo à frente e que arde de amor para ajudar esta menina.
Incendeia tudo, a mãe Carla.
Enfrenta uma comunidade clínica hostil,
chamusca imposições legais,
luta para que lhe validem a administração de canabidiol
à sua menina em fogo,
derrama no papel a dor, mas também a esperança ...
...e aqui estou para atear as labaredas desta fogueira agora.
Esta fogueira de amor,
esta chama de esperança para ajudarmos a nossa bebé da praia.
A Carla, a nossa amiga, escreveu este livro.
É um testemunho de amor, de coragem e de esperança.
Comprá-lo ajuda a financiar tratamentos e convida a uma reflexão sobre estas questões que não nos são alheias.
Porque somos mães.
Porque em dado momento das nossas vidas nos poderemos vir a encontrar com o sofrimento.
Porque, eventualmente, chegaremos a velhos, em condições que ignoramos.
E, portanto, canabidiol pode vir a ser uma palavra com alguma ressonância nas nossas vidas.
Mesmo se não, há esta mãe e esta família.
E a vontade que temos de voltar a encontrá-los na nossa praia num verão próximo.
Se, de alguma forma, vos sensibilizei, vão à Fnac, procurem este título e comprem.
que por aí tenho andado de nariz enfiado nos livros
a perder-me
gostosamente
por entre estantes de
bibliotecas, alfarrabistas, feiras do livro e livrarias,
nunca fuihomenageada pelo facto de gostar de ler.
Não é que ler não seja Gratificante, um valor em si mesmo.
A Biblioteca Municipal Manuel de Boaventura, aqui em Esposende, brinda a esse vício, nutre-o e premeia-o:
Celebra-se em festa, o Natal dos Leitores, e honram-se os leitores mais assíduos, com leituras partilhadas, um lanchinho e um miminho, claro, com letras.
Faz sentido e é coerente, a iniciativa.
Para mim, repito, que fui e sou frequentadora de várias bibliotecas
- escolares, públicas, itinerantes, particulares-
em diferentes partes do país
foi inédito e, portanto, surpreendente.
Quando cá chegámos, há sensivelmente um ano, eu e os miúdos apaixonámo-nos logo pela Casa do Arco! Linda, cheia de luz natural, as salas que comunicam, as janelas com namoradeiras em granito, a passagem "mágica" e, claro, as colecções! Toda uma outra casa cheia de novos livros para descobrir. (Viemos a perceber que também era uma casa cheia de livros Novos, com aquisições recentíssimas a conquistar os filhotes!)
No meu íntimo, temi, muitas vezes, deixar para trás uma biblioteca onde os meus filhos deram literalmente os primeiros passos (não o digo metaforicamente, quero dizer que passávamos lá pedaços de tarde desde que eram bebés, resguardados do frio transmontano em sofás coloridos e de livros ilustrados no colo).
Temi deixar para trás uma amiga, biblioterapeutas uma da outra, a trocar leituras como quem troca pastilhas de vitalidade e esperança.
Temi perder uma certa forma de privilégio, advinda da familiaridade. Pensava: nunca mais me deixarão trazer sacos cheios de livros, requisições a granel, com o à-vontade de prazos porque, se necessário fosse, a amiga nos renovaria os empréstimos sem sequer lá irmos.
Pensava: nunca mais vou poder aparecer na biblioteca de mãos a abanar, porque me sabem o código de leitora de cor, o meu e o dos miúdos, pelo que posso requisitar sem cartão nem nada. Porque os nossos números estão no coração de alguém que bem nos conhece e recebe.
Um ano depois,
ainda tecendo uma amizade verde,
mas bem acolhidos e de leituras bem facilitadas,
sentimo-nos muito bem nesta nova casa.
Os privilégios foram-nos todos concebidos - podemos requisitar cinco livros por cartão, encher o saco do costume - nem só de pão vive o homem e a gente cá em casa vai quase tanto à biblioteca como à padaria! Como devolvemos uns e requisitamos outros, está lá o número e ninguém nos pede o cartão, é quase como já ser da casa, e deixam-nos à vontade e até já nos renovam, se a gente se atrasar.
E, para além de tudo isso, uma festa em nossa honra! Com diplomas e tudo!
Honra a nossa usufruir de um serviço público de qualidade.
E vocês, têm frequentado a vossa biblioteca municipal?
Farta de ter meninos que já trazem as respostas para os exercícios de audição, antes mesmo de ouvirem (porque os ATLs fazem um trabalho pouco honesto de preparação dos testes, que consiste em dar-lhes a resolução de listenings, que "adivinham"), decidi escrever os meus próprios tapescripts e LER o meu texto original para, assim, efectivamente, testar a compreensão oral.
Então, e para que seja adaptado a este nível de iniciação, cá me ponho a inventar diálogos em que parece tudo surdo e se repete a informação em redundâncias hiperbólicas, que só me fazem rir.
Assim:
a) How old are you?
b) I'm thirteen years old.
a) fourteen?
b) NO!!!! Thirteen. I'm thirteen years old!
Ou assim:
a) What's your name?
b) My name is John.
a) Really? John? How do you spell that?
b) J-o-h-n. John!
a) Ah! OK. Nice to meet you JOHN!
É o que eu digo - nos meus diálogos são todos surdos ou atrasados mentais.
Escrito com carinho pela teacher, com o patrocínio da Minisom!
Há raivinhas subliminares crescendo subrepticiamente no nosso país de brandos costumes.
Ouço o idoso que consulta os periódicos na biblioteca rezingar para o outro sobre umas gordas quaisquer "SUBSÍDIO de 500 euros para um refugiado que acabou de chegar!!!...Uum gajo trabalhou neste país a vida inteira e leva com uma reforma que não chega a isso"
Percebo-lhe a mágoa, embora me desagrade o argumento, ergo o sobrolho e tento afastar-me mentalmente do que dizem. Mais de resto, é uma biblioteca, não se alaridam muito; foi só o desabafo que saiu gritado, como um suspiro contido que se não controla.
Tomo café e um grupo de poveiras discute a nova vaga de recém-chegados do lado de lá do oceano. "Estamos a ser invadidos por venezuelanos e brasileiros; qualquer dia nem sei onde isto vai parar. Já não há trabalhos para nós, quanto mais para os outros."
A mim desagrada-me o desfiar de queixumes e acusações que se seguem, desde elas virem todas com silicone em várias partes do corpo meter-se com os nossos homens e por aí vai.
(Parêntesis político para quem gosta nada de se posicionar para cá ou para lá e prefere ir reflectindo sobre os assuntos. Migrações, sempre houve. A história da humanidade documenta-as. Há, hoje em dia, uma urgência em legislar sobre os êxodos em massa, talvez. Para mim, a lente é sempre humanitária. Pessoas. Gente que procura melhor. Gente que foge de algo. Gente)
De facto, na escola, temos recebido muitos alunos vindos do Brasil.
Vêm fora de horas, porque os calendários escolares são desfasados;
vêm desnivelados, porque os currículos são divergentes;
quase não nos entendem o português de Camões;
enfim, causam alguma agitação no barco,
mas depois de embarcarem, remam connosco e fazem parte da nossa tripulação- A turma!
Por vezes, no entanto, o embarque não é fácil.
Esta semana vieram uns poucos.
Mas um.
Vi-o entrar pelo portão dentro,ao início da tarde, transido, olhos de desespero.A funcionária diz-me que ele está aflito pois hoje é dia de inglês, está no quarto ano e nunca teve inglês antes. Sabe que os outros meninos aqui em Portugal têm inglês, pelo menos, desde o terceiro ano. Recebo-o, sorrio-lhe, que não se preocupe. Falo-lhe na língua dele. "Não esquenta, não, cara! A gente vai ajudar você!"
Ao final da tarde tenho aula com ele.
Os outros vêm, sem cadernos, nem livros, mas meigos e cordatos e sempre "Oi, txitxia?" cada vez que não me entendem o português fluído.
Ele não aparece; sei que está na escola, se o recebi à uma. Dizem-me que está de castigo, que houve zaragata no intervalo. Aparece um pedaço depois, de olhos ainda mais desesperados do que da primeira vez que o vi, agora desesperados, aqueles olhos vermelhos de ter chorado.
É dia de revisões para a turma matriz.
De maneiras que tenho de me desunhar para responder à recepção de boas vindas de uns e à necessidade de pôr os outros a trabalhar.
Por isso, apesar de ter a palavra castigo a martelar-me o cérebro (castigo, no primeiro dia em que aparece numa escola nova?) e aqueles olhos suplicantes a chamar-me, tenho de ignorar tudo isso por um bocado.
Logo que arranjo uma brecha em que tenho quase a malta toda controlada a resolver um ou outro exercício
(são diferentes as tarefas, claro, os recém chegados nunca tiveram a língua de Shakespeare)
vou lá, a pretexto de corrigir ou ajudar.
Aninho-me de cócoras, na mesa dele, como costumo fazer para falar ao nível deles,
(assim os meus joelhos o continuem a permitir)
e chamo-lhe os olhos com os meus.
"Então, que se passa? Está a ser um dia difícil, não? Logo de castigo, logo metido em confusões... que se passou?" Pouso-lhe a mão no ombro.
Explica-me entre soluços, atrapalhando-se todo, que o acusaram, mas que alguém lhe atirou não sei o quê antes e que, então, ele agrediu.
Numa outra situação qualquer eu nem ouvia. Brigas de garotos nos intervalos fazem parte do quotidiano normal e saudável.
Mas.Este!
Está tão aflito, tão perdido!
De repente, percebo! Aquilo explica-se-me, ilumina-se.
Não é raiva, o que expressa; é medo.
Sinto-me profundamente comovida com este menino.
A chegar. Escola Nova, vida nova, país novo.
Penso:
vens sabe Deus de que ambiente,
já vivenciaste, vá-se lá saber o quê
quanta violência terás visto
aprendeste-a
agrides por defesa.
Não me contenho, pergunto.
"Sabes, aqui não nos entendemos assim uns com os outros.
Aqui a gente é da paz.
Aqui na escola todo o mundo brinca e é amigo.
Se precisares de ajuda procuras um professor ou um funcionário,
que nós todos estamos aqui para te ajudar, está bem?
(ele acena, acena, acena com a cabeça; os olhos cada vez mais enormes, como pratos)
De onde tu vens era perigoso?"
"Sim, muito perigoso meismo. Minha mãe sempre corria pra ir no mercado e uma vez ela mau escapou dji um txirôteiô!"
Apetece-me abraçá-lo. Afago-lhe o braço e garanto-lhe que aqui está em paz.
É uma voz francófona, a dizer que encontrou o teu telemóvel na MO do Continente
Que me encontrou nos teus contactos como MartaVizinha.
Sorrio, que de vizinha resta pouco. Sorrio pelas voltas que o destino dá para nos cruzar.
E sorrio porque, das duas... três:
Ou eu estou nos teus Favoritos, primeiríssima dos teus contactos frequentes e fui a última a ligar-te
(que não abona lá muito pela tua vida social, pois eu creio que há uma boa meia duzinha de dias que te não falo!)
Ou ela andou a bisbilhotar o alfabeto todo até ao eme. Tás tramada, estás na calha para um bom suborno, pois já te sabe os segredos todos!!!!
Bem, explicar-lhe que já não sou propriamente vizinha porta-com-porta é demasiado complexo. Além disso, na realidade, a minha alma é confinante à tua. Portanto, diga lá então, minha senhora, como havemos de fazer para ajudar a minha menina!
Lembro-me de lhe sugerir que procure nos contactos pelo teu esponjo, que escreva "marido", que escreva o nome próprio. Falho, aqui, porque tu não lhe chamas pelo primeiro nome, mas pelo segundo. Adiante.
A senhora volta a ligar-me, naquele sotaque enchanté de "ser para os outros, ãh!", mas que non, non non, pas de rien que não encontra marido!!!!
Apetece responder - procure em A de amante ou vá ver em Xuxu, deve ser assim que ela o trata, cá entre nós que ninguém nos ouve!!!
Lá chegamos a um accord, ela diz que ainda tem 50% de bateria e que tem um carregador compatível e que vai colocar a carregar; agradeço, que gentil, muito grata pelo cuidado, vou então arranjar maneira dela telefonar para si própria e combinar consigo como resgatar o telemóvel, muito grata, minha senhora. Pas de tout, pas de tout,ãh! Já me aconteceu a mesma coisa e não tive a mesma sorte e que isto a gente traz as vidas cá dentro, ah, o incómodo, contactos, tudo!
De maneiras, miga, que não te safas!
O mundo é uma azeitona
e, mesmo à distância,
consigo saber
que hoje foste comprar cuecas à Modalfa
(e muitas, que vinhas com as mãos tão cheias que deixaste o telelé!)
que não tens tomado a pastilhinha p'ra lembrança
e que continuas tão atarefada que nem dás por falta do phone!
Se outras razões não houvesse, miga, não apagues ainda o meu contacto da lista. Nunca se sabe quando será a próxima vez que, de Esposende, eu te encontro o telemóvel numa aldeia recôndita de Bragança!
Já não me podes tocar à campainha para pedir sal,
mas conta comigo para te resolver a vidinha na mesma!
Como vês, o universo já deu provas de que estou cá para isso!
Salvos pelo gongo, eles e eu, toca para o intervalo!
Estamos com a sala quase toda ordenada, os materiais guardados, os lanches em riste para ir brincar. Salvo um ou outro, mais atrasado na tarefa final, ou mais lento a arrumar, ou mais curioso com o lanche do que brioso da organização da mesa.
TíxÉr, tixÉr, a mousse estourou!!!
Ah?!
A mousse do Vítor estourou!
Viro-me, avanço três passos até o local da ocorrência.
Já lá estão duas meninas solícitas a socorrer o Vítor com carradas de lenços de papel e manadas de papel higiénico!
O Vítor, esse, com um ar desolado - não sei se com mais pena do meu caderno ou do chocolate extraviado, acha que hoje é um dia aziago porque, primeiras, tinha partido os óculos no recreio e segundas tinha desperdiçado a lambiçe por cima do notebook! (caderno)
O caderno!Quanto mais elas limpam, mais espalham!
Parece que levou com diarreia de elefante em cima!
Mas o que é que passa pela cabeça de uma mãe para enviar mousse de chocolate, com este tempo tórrido, aquilo tem ovos...
Sorrio-lhe para o animar: Deixa lá, fica um caderno docinho!
Foi em Setembro, na primeira aula do ano. A gente acha que vinte anos de serviço a pisar salas de aula nos preparam para tudo. Que já nada mais nos há-de surpreender. "Só que não", como eles dizem.
Era uma turma de terceiro ano. Por conseguinte, iniciação à língua. Alguns costumam ter umas luzes, por terem frequentado AEC (aula de enriquecimento curricular) no segundo ano, mas não é forçoso.
Entro na sala de aula e, ainda sem contacto ocular por estar a pousar pasta e tralhas na secretária, escuto uma voz, algures da secção das carteiras do meio, que fluentemente e de uma assentada me interpela:
"Teacher do you mind if I speak English to you all the time? You are the teacher of English, right? You should be fluent and I could practise speaking to you..."
Uou, uou, uou, uou, uou! Pára tudo! (penso) O que é isto?
Levanto o pescoço e foco - é um miúdo alto, robusto, mas algo desengonçado.
"How come do YOU speak English so fluently?
Are you American?"
(deduzo americano, pela pronúncia)
"No, I'm not American; I'm Portuguese. I've learnt the language on my own by watching videos! For me that's easy!"
Bem, a coisa por aí foi, mais uns minutinhos de diálogo absurdamente fluído e estruturado para uma aula de iniciação à LE (língua estrangeira) e para um miúdo de nove anos que aprendeu a falar sózinho...
A sentir-me avassalada por um misto de emoções:
surpreendida, mas a juntar as peças do puzzle e a perceber, logo ali, que este devia ser o menino autista que me fora sinalizado;
absolutamente siderada com a capacidade desta criança;
inassumidamente satisfeita por esta oportunidade - para mim - de desenferrujar a língua, morta de papaguear cores, números e animais de estimação;
e ainda apreensiva,
quer dizer,
de pé atrás relativamente às implicações que isto há-de vir a ter na gestão da aula, na resposta às necessidades deste aluno em concreto e na manutenção da sua motivação.
De repente, lembro-me dos outros!
Espalho o olhar em meu redor e vejo um cardume de peixinhos de bocas abertas, uma ninhada de crias assustadas, algumas a ousar balbuciar em guincho semi choroso: "mas... mas... mas, profesoooooooora, eu não sei in-gue-lê-ê-ê-ês!"
Não se preocupem!
Eu e o meu assistente
(pisco-lhe o olho)
estamos aqui para vos ajudar!
Como professora, eu AINDA vejo muitas caligrafias.
Ao contrário dos profetas da modernidade, os que advogam que redigir à mão é algo ultrapassado nesta era de avanços tecnológicos e digitais, eu acredito na magia das letras manuscritas.
Cada caligrafia é única e retrata um pouco da personalidade do seu autor.
Por isso é que costumava brincar com os que têm "letra de assassino" - Olha bem para este texto, vais matar alguém? (Agora já abandonei essa velha piada. Os pequenos não entendem a ironia, não vale a pena.)
Não sou grafologista,
nem me ponho a interpretar significados ocultos nas dobras dos emes.
Mas aprecio uma página limpinha e aprumada.
Mais, aprecio os reviretes, a proporcionalidade e o equilíbrio dos grafismos.
Escrever é desenhar. É como uma arte. É uma arte.
Como é sabido, eu gosto de escrever.
E gosto de escrever à mão.
Tenho diversos diários de infância e da juventude. O conteúdo é fraquito, mas agrada-me apreciar a evolução da caligrafia. A minha professora de literatura do décimo segundo ano, uma poetisa ela própria, dizia que a minha letra era toda às rosquinhas; fazia lembrar biscotios!E que, depois de cada parágrafo era preciso respirar fundo! (pela densidade!Muita informação). Dizia que eu escrevia como um furacão, com paixão. Adiante.
O gosto por estas coisas começou por volta da infância tardia ou talvez mesmo na adolescência, altura em que encontrei lá por casa um antigo manual de estilos e técnicas de escrita, provavelmente oriundo da escola comercial que o meu pai frequentou.
Aquilo era fascinante.
Páginas e páginas de alfabetos desenhadinhos em diferentes estilos cornucopiados, quem não fizer ideia do que eu estou a falar é favor googlar os seguintes termos: Gótica, Francesa, Cursiva Inglesa, Ronde, etc
Aquilo era
inclinado
entalado entre duas linhas
curvidesenhado
e
sombreado.
Dava trabalho!
Nessa altura (para aí no sétimo ano?) inspirada pelo didatismo do tal manual do meu pai,
decorei as capas dos meus cadernos com o nome das disciplinas em rebuscadas grafias.
Devo ter alma de copista!
Agora, ao que parece, tudo isso entrou em desuso.
Menos nas tatuagens. Nas tatuagens, por alguma razão que me transcende, ainda optam por letras algo artísticas. Não é que os tatuadores as saibam grafar. Imprimem a fonte da internet e decalcam na pele, picando por cima. Ou seja, usam tinta, mas não é bem a mesma coisa.
Pelo que investiguei, afinal também há uns livros atuais de caligrafia para adultos que funcionam assim como uma espécie de mandalas para soltar a mente e ficar zen. Chamam-se "Caligrafia para relaxar". Se alguém quiser experimentar isso em mim no Natal, eu prometo dar feedback.
Enfim, eu vejo centenas de letras. Digo vejo porque dizer leio seria abusivo. algumas são tão intrincadas que não se leem - adivinham-se! São futuros médicos (nem isso, que a receita é eletrónica)
Vejo caligrafias esticadas ou redondinhas, garrafais e minúsculas, de toas as formas e feitios. Há as que deixam manchas entre as palavras e eu imagino logo as marcas da tinta nas mãos- os lados esborratados de azul, a carimbar a página por ali adiante. Outras há que de tão bonitas se tornam confusas.
A minha letra é tão escura e carregada que deixa marcas de relevo no papel. Como Braille. (Muita pressão na caneta, segundo os entendidos, denuncia alta pressão emocional. Sou uma apaixonada!) E é grande, do tamanho da minha miopia e generosidade. A da minha mãe ainda era maior do que a minha: gorda e redondona, cheia, bem ao centro da página - como a mulher extrovertida e autoconfiante que ela era.
Ainda bem que já ninguém me escreve senão por teclas ou estariam sujeitos ao escrutínio analítico de um olho treinado. De qualquer forma, por deformação profissional, continuo a ler nas entrelinhas.
A propósito, conhecem a caligrafia de quem é importante nas vossas vidas?
Dos vossos pais? Dos vossos irmãos? Dos vossos filhos?
Escrever "à mão" é um ato de intimidade. Uma dádiva.
Não é à toa que os poucos impressos ou formulários que ainda temos de preencher à mão pedem letra de imprensa!
Já ninguém escreve, digo, manuscreve quase nada.
Nem postais, nem cartas, quase já nem listas de compras.
A minha irmã entra naquela restrita categoria das mulheres "Como é que ela consegue?"
A gente pisca os olhos e ela fez uma mega prova de Trail.
Ou frequenta um campeonato de Escrita.
Ou anima um casamento até às quatro da manhã, numa sexta à noite, depois de um dia de trabalho, e no sábado levanta-se para ir correr.
Não sei como é que ela consegue.
Nessa mesma sexta à noite, para mim, levantar a mesa é considerado um esforço. Vestir o pijama dói quase tanto como o salto alto. 😉
Está bem que eu sou mais velha. Mas ela não é assim tão mais nova.😁
Não é a idade.
Sempre foi assim.
Ela estudava, ela cantava, ela servia às mesas ou contava carros, ela fazia voluntariado, ela fazia trabalhos para os doutoramentos dos outros e também era ela quem fazia os bolos, lá em casa, os bolos e as sobremesas… na verdade, ela fazia tudo! E eu nunca percebi #cumékelaconsegue
Só que,
na altura,
um gajo era jovem e tinha a força toda e parecia que pudesse vir daí a vitalidade e o desdobramento, hoje vai ao cortejo, amanhã canta no coro, depois toca violino na festa das crianças, dá um saltinho à U.M. e entrega uns trabalhos...
Agora…
ela é mãe.
E mulher.
E doutora lá no serviço.
Faz mil e uma coisas de responsabilidade e fá-las todas de unhas pintadas e rímel nas pestanas.
(Sei bem a quem fazes jus, mulher!)
De motard a bailarina,
ela é esta versatilidade,
esta força,
este brutal existir camaleónico,
sempre a superar-se e a abismar-nos no processo.
A gente pisca os olhos, e pronto, lá está ela outra vez!
Desta vez, a criar mais um espetáculo infantil, um musical cheio de luz, cor e fantasia...
#cumékelaconsegue
Quantas horas tem o seu dia ou a que parte do dia terá ela ido buscar estas horas?
Em bom abono da verdade, já assisto a estes feitos há tantos anos que já me não haveria de surpreender.
Aparentemente, do meu texto de ontem ( Deslumbramento) transbordava uma alegria tal, que os generosos amigos leitores me felicitaram e abençoaram vezes mil pela vida perfeita que agora levo.
Ora bem, não é que Esposende não seja o paraíso na terra,
mas eu não vos falei de Agosto,
nem da nortada,
nem da humidade,
nem do facto de não haver médico de família disponível,
nem hospital sem ser privado.
A questão é que eu não quero contribuir para aquele deprimente sentir colectivo que o mundo das redes sociais promove - aquela doce ilusão de que as pessoas são todas muito felizes, mais felizes do que nós, que têm vidas perfeitas, como nos filmes, que tudo corre às mil maravilhas, sem contrariedades, nem desilusões, nem nervos miudinhos, nem ansiedades, medos, receios, fúrias, mágoas, tédios e vontades de fugir.
Pois cá em casa é disso aos magotes, sempre à turra e à massa uns com os outros, não se pense que não consigo estragar a linda pintura do pôr-do-sol dourado!
Desengane-se quem julgou que isto era tipo Miami Beach e que a minha vida era exclusivamente feita de glamorosos dias à sombra de frondosas palmeiras. Népia.
Continuo a ter de estender roupinha, aspirar migalhas e pôr o lixo.
Continuo a ter de lhes cortar as unhas dos pés para que caibam nas sapatilhas malcheirosas.
Continuo a ter de berrar para que arrumem os quartos.
E façam os trabalhos de casa.
E não berrem um com o outro.
(😁😁😁berrar para que não berrem!!!)
As idílicas caminhadas praia fora têm sempre banda sonora dos dois a reclamar em stereo, um de cada lado dos meus ouvidos (ainda bem que eu só vim apetrechada com dois! Ouvidos, claro está!)
"Portantos", amigos, aqui não há Pamelas de sorrisos descarnados e mamas saltitantes.
Não apenas porque não tenho dinheiro para os implantes,
mas principalmente porque a minha vidinha de Baywatch vai muito para além da praia.
O que eu realmente tenho de vigiar (watch) não é a baía (bay), mas os alunos que lá por estarem eventualmente mais bronzeados, não são necessariamente mais amenos que noutras paragens do país.
Desenganem-se e sejam felizes.
A minha vida, empurrada pela brisa marítima ou aos trambolhões na turbulência da nortada, é igual às outras todas. Só que os carros que não pegam, as birras dos catraios, os amuos dos adultos, os desaforos no trabalho, as ofensas, os mal-entendidos e os atritos não ficam bem na fotografia. Fazem, porém, parte da vida. Quem o não assumir, mente.
Não por falta de tema, mas por puro deslumbramento.
A mudança para Esposende trouxe uma dimensão à vida que me absorveu todas as atenções, ou melhor dizendo, a vida aconteceu e escrever não.
Um pouco à semelhança do que me acontece com as fotografias. Na voragem das redes sociais, as pessoas fotografam tudo e fazem posts. Eu prefiro viver os momentos sem câmara na mão. Costumo dizer que cá em casa as nossas refeições são tão deliciosamente fotografáveis, que não dão tempo de as fotografar... comemo-las!
Escrever, no entanto, faz parte do meu processo de ler o mundo, de me encontrar e me entender. Tenho de voltar.
E, no espaço que ficou por contar fica o meu encantamento, ficam pores-do-sol deslumbrantes, a maresia a perfumar os nossos dias, os gritos das gaivotas na cidade, o rebentar das ondas a embalar os meus almoços de marmita, as caminhadas junto ao rio. Plenitude.
Agora que já conhecemos os cantos à casa, que já damos com os interruptores no escuro, que temos rotinas alinhadas e novas pessoas com quem partilhamos sorrisos, posso sentar-me a contar.
A contar que encontrámos o nosso espaço e que as nossas energias se alinharam para algo de bom.
Que o Pedro literalmente vestiu a camisola de uma nova equipa, foi bem acolhido, marca golos e festeja num balneário efusivo onde, pensando bem, se festeja, quer haja vitória ou derrota.
Que a Maria nada profusa e diariamente, até lhe crescerem guelras; que conquistou a marginal do Cávado de patins nos pés em tardes de inverno e que brinca em bando com as crianças da vizinhança, numa alegria impagável.
Que gostava de os ver sair de casa, sábados pela tardinha, catecismos na mão, penteadinhos e aprumadinhos pela aldeia fora, os dois sozinhos até ao adro da igreja, para a doutrina, seguida de missa. Uma missa onde, por vezes, lêem ou andam com o cestinho das moedas - a fazer sentido, para mim, essa integração na pequena comunidade, a aguçar o início de uma pertença.
Que gosto de os ver sair aos três, pai e filhos, de bikes e capacetes na cabeça para ir dar ao pedal até para lá do Suave Mar ou mesmo chegando à praia a seguir, S. Bartolomeu.
Que o pai pintou os muros do terraço, poliu móveis de jardim, hortou uns vasos com ervas aromáticas e plantou umas árvores de fruto.
Que enchemos a casa de família como nunca, porque agora estamos próximos e é mais fácil. Que, por isso, o Natal teve um sabor especial, finalmente sem ter de fazer malas, nem deixar a nossa casa para celebrar. Há tantos anos que desejava ter uma ceia assim: a casa quentinha, a cheirar a lareira e canela, a mesa posta por nós, com as nossas loiças e carinhos.
Que bom é poder ter o meu afilhado Tomé a dormir na minha cama, as minhas sobrinhas a passar umas temporadas em festas de pijama e mergulhos de primos. Mesmo no inverno, numa tarde chuvosa, enfiámos uns fatos de banho nuns sacos e fomos passar um sábado à piscina com ondas. Bom estar aqui mais perto de os ver crescer.
Que bom ter o meu pai a tocar-me à porta de surpresa ao domingo, com uma rosca debaixo do braço e um beicinho de muito mimo como só ele.
Algo de bom, sim.
O lugar onde escolhemos viver permite-nos um estilo de vida que é bom para a minha família.
Criámos rotinas mais saudáveis, mais próximas da natureza, com tranquilidade e tempo para estarmos juntos e fazermos coisas juntos que dantes não fazíamos. Bom.
O deslumbramento, esse, permanece.
Quando cá cheguei, apaixonei-me. Costumava ir buscar os miúdos à escola, ao final do dia, e regressar a casa, propositadamente, pela marginal, ao invés de apanhar a estrada nacional que é interior. Fazia-o (faço-o) especificamente para vislumbrar aquela nesga de mar, uma onda que fosse e a bola vermelha do sol a despedir-se no horizonte. Dizia: "Olhem, filhos, olhem que bonito" e eles que sim, já sabiam, era muito lindo, tão bonito como no dia anterior. Chegava a casa, comentava com o pai o meu encantamento e a desvalorização das crianças e ele dizia-me: "Isso passa-te, depois habituas-te". Não passou. Nem sei bem explicar, mas enche-me a alma. Muito. Basta aquilo para o meu dia ter valido a pena. Para dar graças. Acho um privilégio poder viver isto.
Na marginal de Esposende, numa ventosa tarde outonal, o céu enche-se de coloridos papagaios dos praticantes de kitesurf. Isso é lindo e arranca-me sempre um sorriso.
Gosto da praia. Não é a praia das barracas e veraneantes. A praia deserta no inverno, quanto mais deserta, mais bonita. Sem interferência entre nós e os elementos. Poder ouvir o mar só ele, sentir a rabanada desconcertante do vento, cheirar o sargaço, ouvir o silêncio daqueles sons naturais.
"Toma, Maria, esta praia é toda tua. Dou-ta!" (eu, de braços abertos, ela de calças de fato de treino arregaçadas a correr na areia intocada).
Gosto de Fão. Da paisagem deslumbrante por cima da ponte, as aves lá em baixo em bancos de terra no rio. Gosto de caminhar à beira rio, de ouvir o coaxar das rãs e de dar de comer aos patos. Gosto de ver os canonistas a dar a braços e de apreciar os barcos gastos e cansados, mesmo quando estão ancorados no lodo.
O deslumbramento permanece.
Tenho de voltar a derramá-lo nas páginas.
achei curiosa a existência de umas pedras de tamanho considerável no terraço.
Pensei "p'ra que raio é que eles haveriam de querer estes pedregulhos?"
É que aquilo não tinha aspecto de ser decorativo. As pedras eram grandes de mais e rugosas de mais para adornarem fosse o que fosse.
Assim que abri o estendal... percebi!
Os pedregulhos são essenciais para conseguir que a roupa lavada não levante voo!!!!
Enfim, só agora compreendo realmente na pele (!!!) o verdadeiro significado da expressão o vento fustiga.
Perguntar-me-ão,
mas tu não ias para Esposende quando eras pequena?
Não sentias o vento a bater-te nas pernas quando corrias pela duna abaixo,
não levavas com ele nos lábios roxos quando saías do mar a tiritar e a dizer que a água estava boa, não comias o pão do dia anterior com marmelada polvilhado de areia da nortada?
Sim, mas aí não tinha a percepção de que isso era doloroso. Era a infância feliz e não era uma brisasinha que me ia impedir de apreciar a praia com os primos.
Agora compreendo.
Que custa mais caminhar contra a nortada.
Que, à vinda, a Maria nem precisa de levantar os patins do paredão para chegar a casa - vem empurrada pelo vento, sempre a rolar!!!!
Que com um guarda-chuva na mão corro o risco de levitar sobre o Cávado;
Que mesmo o veículo em que me desloco (a que chamo carro, mas é sabido ser um verdadeiro tanque de guerra, grande e pesado) vacila na ponte de Fão.
Que aqui praia é sinónimo de tapa-vento. Ou barraca.
Que a Nortada até despenteia carecas.
Que, por falar em despentear, a aragem me traz sempre as melenas revoltas. Das duas uma: ou fico com um ar selvagem e arrebatador; ou é desta que mandam alguém do hospício atrás de mim!
Agora compreendo, at last!
Que ou ponho os pedregulhos nas bases do estendal
ou tenho de ir resgatar os nossos trapitos a Viana!
Como já por cá ando há uns tempinhos, já há muito percebi que a vida dá muitas voltas e que não há como escapar à ironia do destino.
Também já percebi que rir é o melhor remédio e, portanto, quase sempre encaro com um se-não-fosse-cómico-era-trágico!!!
Eu estive, praticamente, dezassete anos em Bragança.
Na primeira década e picos concorria para me aproximar da minha terra natal - Braga.
Por uma questão de estabilidade, fomos leccionando no nordeste transmontano.
Ironia do destino,
assim que desisti do litoral, começou a ser difícil ficar colocado em Bragança!
Os anos foram rolando e depois de algumas cambalhotas decidimos vir para baixo.
Ironia do destino,
no ano em que desço, surgem duas vagas para mim no centro da cidade de Bragança.
Deixa-me rir!
Sabes que mais, ironia do destino?
Já não faz diferença.
Tarde de mais.
Respondo-te com um sorriso grande.
De marmita em frente ao mar, de pés descalços na areia molhada em tardes de inverno,
de caminhadas e bicicladas em família por uma marginal deslumbrante,
de céus estrelados rasgados pela faixa intermitente do farol,
de refeições e trabalhos de casa feitos na mesa do terraço,
de um filho que marca mais golos nesta equipa
e de uma filha que aprendeu a andar de patins ao vento.
Respondo-te de sorriso nos lábios
cheios da proximidade do meu velho pai
da minha mana cúmplice
do meu afilhado docinho.
Somos livres.
O destino pode soprar com ironia
que a gente,
como já cá anda há uns tempinhos,
já aprendeu a ser feliz na mesma.
Eu já tinha entendido que isto de viver na aldeia me ia exigir uma certa adaptação mental. Até já me tinha mentalizado que certamente não seria muito prático andar de salto alto pelo empedrado das ruelas do bairro rural.
Porém, continuo a ser apanhada em falso.
Parece que foram muitos anos a ser town girl!
Ir comprar limões à mercearia da aldeia é tão adequado como procurar quem venda gabardines no deserto ... porque simplesmente não há quem. Na aldeia os limões vêm do quintal do vizinho. O máximo que a senhora da venda poderá fazer será ceder-me alguns. Nas suas palavras "limões? aqui não vendemos limões, mas não se vá embora que já lhe arranjo alguns!"
Simples.
Poderia dar exemplos mil.
Logo percebi o ridículo que era o nosso alarme de telemóvel quando, às seis e meia da manhã, ele cacareja em despique com o galo da vizinha. Uma coisa é um gajo ter o cacarejar do galo no telemóvel. É giro. É rústico. Outra coisa é, de facto, o galo verdadeiramente cantar. É autêntico. Chama-nos à verdade das coisas.
Aqui não há trânsito. O máximo que temos de enfrentar é o tráfego de tractores, nas horas das lides, na hora de ponta de regresso dos campos. Tractores carregados de nabos, que rolam devagar em caminhos onde não se pode ultrapassar. Na aldeia as coisas têm o seu tempo. Não há pressas. Desacelera town girl.
Aqui na aldeia há um condomínio que nunca foi terminado e, por conseguinte, só uma moradia é que está habitada. Pois é nesse telhado que os passarinhos se concentram. Pousam todos ali, naquele telhado contíguo aos outros das casas vazias. Não pousam nessas. Reparo nisso e penso que a natureza tem a sua lógica sapiência. Pousam talvez no telhado mais quente, hipoteticamente por haver uma lareira acesa no interior da moradia. Ou porque gostem da companhia daquela família. Dos cheiros da casa habitada. Das vozes dos moradores. Talvez lhes escutem os segredos. Talvez não sejam tolos e saibam que dali poderá vir alimento.
No meu terraço é assim. Os meus filhos sacodem lá a toalha no fim das refeições e os passarinhos aparecem por lá a apanhar as migalhas. Fazemos parte do ecossistema. Isso preenche-me de uma forma que nem sei bem explicar. Dir-se-ia que era o mesmo que ir dar migalhas de pão às pombas na grande avenida central da cidade. Mas não é. Aqui, os passarinhos fazem parte da nossa família. E nós da deles. Vêm ao quintal, que é nosso e deles. Partilhado. Em comunidade.
Na aldeia há uma padaria, de que gostamos muito. Segue o ciclo da vida, com pão para dias da semana e rosca ao domingo. A regueifa marca o dia do descanso com um sabor melhorado. Faz sentido e imprime o compassado ritmo dos dias à nossa vida. Sai-se para trabalhar, para ganhar o pão, que à tardinha levamos para casa. Fico no carro e um dos miúdos vai lá, ao vir da escola. Gosto disso.
A padaria da aldeia também acompanha as datas festivas, com os doces próprios de cada época. Há bolo rei no natal, moletes no dia do pai, pão de ló na páscoa. Não é como ir a um hipermercado e encontrar tudo isso o ano todo. Há uma banda olfativa para a passagem das estações. Também gosto disso.
Os meninos vão à catequese na paróquia e vamos à missa na capela da aldeia. É uma comunidade pequena e vive-se a liturgia de uma forma mais íntima do que numa paróquia grande. Parece que quando o pároco diz "irmãos" é mais fácil sentirmo-nos parte da família cristã. Talvez por sermos menos. Não sei. Em quatro dezenas de vivências cristãs nunca tinha participado numa eucaristia em que se cantasse os parabéns e batesse palmas aos membros da paróquia. Gostei disso também. Aguçou-me o sentido de pertença, apesar de ser forasteira e recém chegada.
A tranquilidade e o sossego são reparadores. Da minha janela vêem-se ovelhinhas a pastar e ouvem-se vacas a mugir. Quando o vento empurra, cheira a vacas. Suponho que isso é uma desvantagem, ainda assim preferível ao monóxido de carbono da urbe.
Isto de celebrar o dia do pai na escola é um pouco delicado.
Não há como negar que nos aproxima da criançada
- eles gostam de contar tudo sobre o pai,
desde a idade
ao número de dentes que traz na boca,
passando pela cor dos truces,
valha-nos Deus que as ceroulas entraram em desuso!
Um deles: "O meu pai é gordo, velho, careca e barrigudo!"
Eu (em balão de pensamento) "Adorava conhecê-lo!"
Distribuo as fotocópias com a tarefa para a efeméride, explico que é TOP SECRET e só podem mostrar no dia, enquanto eles vão GRITANDO, entusiasmados, ou nervosos, ou confusos, a dizer coisas que eu preferia não saber:
"Não há perigo! O meu pai nunca mexe nas minhas coisas! Ele Nunca entra no meu quarto"
"O meu nunca larga o telemóvel!"
"O meu quando chega são cinco da manhã e eu já estou a dormir"
"TíxEr, o meu pai, uma vez, também veio muito tarde, era para não vir nunca mais, mas depois veio e eu estive à espera para ver se ouvia a porta..."
"Mas isso era o teu porque se ia embora, o meu chega Às cinco da manhã, mas é de vir da fábrica..."
(...)
Digo para se concentrarem se não não conseguem acabar a tarefa para a data prevista.
"Eu tenho muito tempo!!!O meu pai está na Alemanha, só vem em Junho!"(disfarça com um sorriso triste)
"Não faz mal, fazes-lhe uma surpresa quando ele chegar!Isto não é um iogurte, não se estraga nem tem prazo de validade"
"Iogurte?Vamos fazer um iogurte?" (acorda uma lá do fundo)
NOPE!
Vamos mas é trabalhar, siga, let's work, não há mais conversa!
Um braço no ar.
DIZ!
Não me podes dar mais fotocópias tíxEr?
"Como assim? Para que queres mais? Isso é para o Father's Day!"
(assoma-se à soleira da porta da sala de aula a dona Gertrudes, uma querida bonacheirona, cara de sol, sorriso de lua)
"Esta chave do carro é sua?"
"Aahh, talvez, deixe cá ver... é de um Porshe?"
Atenção geral, cabeças levantadas dos livros, alvoroço excitado.
"Uau tíxer, tens um Porshe?"
"Não, tenho um Citroen, mas se fosse a chave de um Porshe ficava com ela.!!!!"
Grandes, múltiplas e simultâneas ilações
- em histerismo multivocálico -
sobre:
a) os carros que têm;
(alguns efectivamente Porshes)
b) os carros que a família toda até 5ºgrau, os vizinhos, os amigos, os conhecidos dos amigos deles, os jogadores de futebol e as celebridades de que eu nunca ouvi falar têm;
c) o carro que eu tenho;
d) o carro que eu devia ter;
e) o que aconteceria se eu ficasse com a chave de um carro que não é meu;
f) as chaves que a dona Gertrudes ainda segura nas mãos;
g) episódios diversos relacionados com chaves que a família toda até 5ºgrau, os vizinhos, os amigos, os conhecidos dos amigos deles, os jogadores de futebol e as celebridades de que eu nunca ouvi falar já vivenciaram;
h) episódios diversos relacionados com carros que a família toda até 5ºgrau, os vizinhos, os amigos, os conhecidos dos amigos deles, os jogadores de futebol e as celebridades de que eu nunca ouvi falar já vivenciaram;
i) o facto de eu ser esquecida e ter deixado as chaves perdidas algures;
j)...
I should know better! Eu já devia adivinhar... tão concentradinhos que estavam a resolver os exercícios e a dificuldade que foi, depois, voltar a controlar o motim!!!
O resultado de andar a ler um romance na Toscana (por sinal uma leitura de caca, mas avante) é ter tido um sonho espectacular esta noite:
Sonhei que estava a mergulhar num paradisíaco cenário na ilha de Capri. 😂
Saltava de uma formação rochosa para águas límpidas e de um azul tão cintilante como só nos filmes e a sensação era extremamente libertadora e prazerosa.
Curiosamente a memória deste exacto dia no facebook era a seguinte:
Tenho-me como uma pessoa frontal, mas a idade ensinou-me a não dizer TUDO o que penso.
De outra forma, sair-me-iam frases assim:
"Olhe, desculpe,
a senhora sempre foi assim azeda,
é um ressabiamento recente
ou apanhei-a simplesmente num dia mau?"
Nem de propósito!
Estive, de novo, hoje mesmo, num balcão público onde me atenderam com má-vontade e sobranceria; onde me despacharam para a chefia se estivesse descontente; chefia pela qual aguardei civilizadamente durante uma hora, após a qual o meu vernizinho estava a começar a estalar.
Percebi, então, que outras pessoas, menos ordeiras do que eu, estavam a ser aviadas. Percebi também que há situações nas quais, se formos muito cordatos e cívicos, tendem a não nos respeitar.
Portanto, sem elevar o tom de voz, com diplomacia e assertividade (às vezes fico pasma com o meu próprio sangue frio) exigi que me resolvessem a questão, um direito meu, ou que, por favor, me dessem o livro amarelo.
Palavras mágicas. Fez-se solução a velocidade cruzeiro e, como não tinham troco, nem da fotocópia necessária se cobraram!