quinta-feira, 15 de março de 2018

A ronca

Está uma noite invernosa. 
Há uma tempestade, a que chamaram Gisela, que há dias fustiga o nosso país.
Em Esposende tem havido pequenos ciclones, um tornado, enfim ventos fortes, com alguns danos - físicos e humanos.

Estou a salvo. 
Numa casa confortável, com os filhotes de barriga cheia aconchegados em camas quentinhas.
Agradeço ao universo pelo facto.

Ouço, lá fora a sirene.
Talvez os bombeiros, uma ambulância. 
(Sempre que ouço uma ambulância ainda estremeço.) 
É o mal de não ver televisão.
Dá-se pelas coisas, em vez de ter o cérebro em hipnose entretenimental.
A esta hora devia estar esparramada no sofá, embrenhada numa qualquer série do ... é Netflix que se chama o canal da moda, não é?

Todavia, não.

Aqui fico, a escutar a ronca que geme como uma gata gigante a parir. 
Um uivo longo, 
gordo, 
um lamento a cortar a noite, 
a chamar os barcos à terra segura, 
a salvo da turbulência revolta do majestoso oceano.

A ronca. 
Assim que viemos habitar esta casa, comecei a ouvi-la,
encantada por mais este elemento marítimo na minha vida. 
Gosto de ouvi-la, por cima do rumorejar das vagas, por cima delas,
o Homem a tentar gritar mais alto do que o mar.  
Gosto de ouvi-la,
a ronca,
matriarca dos marinheiros,
como uma mãe que grita da soleira para os filhos virem jantar.

Eu não sei explicar que relação íntima é esta que tenho com o mar, 
que a mera presença deste agudo acústico a cortar a noite chamando os barcos à barra
(que poderá para outro ter o seu quê de arrepiante)
me preenche!



"Homem livre, tu sempre gostarás do mar" - Baudelaire, Charles

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