
Segunda de manhã.
Costuma ser um dia difícil, porque foi fim de semana e a maior parte dos meninos desta turma está institucionalizada. Portanto, quer tenha havido visitas, quer não; quer tenham ido a casa, quer tenham ficado na casa; sinto-os sempre mais agitados nesta do que na outra aula da semana.
Assomo à porta da sala de aula.
O Tomás, muito carregadinho de verde no nariz, quase nem me deixa entrar, vem a correr, pendura-se em mim, sempre a guinchar, deixe-me ser eu, deixe-me ser eu, deixe-me ser eu a ver os trabalhos de casa.
Ainda tento acalmá-lo, mas sei que é um menino NEE e que é difícil demovê-lo quando tem uma ideia fixa. Se o contrariar, não trabalha a aula toda. Tento explicar-lhe que seguimos uma ordem e que hoje não é a vez dele, sempre a ser interrompida por: deixa-me? deixa-me? enquanto tento explicar-lhe que temos de escrever o sumário primeiro e depois se verá de quem é a vez.
Deixa-me? deixa-me? Nenhum dos outros parece remotamente interessado na aula, nem parece querer disputar tal privilégio, pelo que permito ao Tomás que vá verificar o TPC, como deseja.
Entretanto, antes mesmo de chegar à minha secretária, vozes que se levantam,um empurrão contra uma mesa e uma cadeira que tomba. Oiço: Te nasça um garrotilho na cabeça... Só tenho tempo de pousar a pasta e correr a apartar dois lá ao fundo. Ameaçam-se e rogam-se pragas de etnia, que ao início estranhava, mas agora já reconheço. "C'os teus mortos" e "Havia de te cortar a cabeça c’más casnás (galinhas)". Estou farta de ouvir dizer estas coisas, cada vez que se zangam uns com os outros; mas de cada vez que os oiço provoca-me um arrepio. É perturbador.

Aqui não falamos assim uns com os outros, vamos acalmar, cada um para o seu lugar.
Fico por ali, num compasso de espera, até que serenem. Vou passando um chá. Escutam-me, algo envergonhados, porque me estimam e sabem que me desiludem.
Ânimos amainados. Pego na pasta, chego, enfim, à minha secretária.
O Alfredo e a Suzete trocam impressões sobre as precárias dos familiares, o padrinho de um, o padrasto da outra. Um deseja a vinda, a outra não. Espera que lhe proíbam a saída, porque era mau e bebia muito e agora o namorado da minha mãe é muito meu amigo. Ouço muito mais do que gostaria enquanto tiro os meus materiais da pasta - eu que até sou muito rápida a fazê-lo.
Dirijo-me ao quadro branco e digo-lhes amavelmente vamos lá trabalhar. As canetas estão tão frias que parecem não querer escrever. Como eles, penso. Abro a lição e vou dizendo, mornamente, Come on, kids! Let's work! Tomás get you notebook, anda! Julia sit down and copy the summary! Vamos lá pessoal!
Faltam dois.


A Laurinda também não está. Eles dizem-me, aos gritos e em disputa ( a ver quem grita mais alto e me dá as novidades) que ela foi ter com a Dona Eufémia, a funcionária, para pôr o champô. Dos piolhos. Aparecerá quinze minutos antes da aula terminar com a touca na cabeça e um cheiro pestilento, pretexto para os outros todos deixarem de trabalhar outra vez, se é que entretanto já haviam começado...