sábado, 11 de abril de 2020

Crónicas da Quarentena - Blowing a kiss, beijo soprado

Ando com saudades do meu velho. 

Hoje senti tantas, 
que me deu o impulso de pegar no carro e ir lá vê-lo.
Sem contacto, claro, 
pois que as tristes circunstâncias que vivemos nos impedem de abraçar quem mais amamos.

Fabulei - vou na mesma!
Toco-lhe à campainha de surpresa,
aceno-lhe cá de baixo 
e mando-lhe um beijinho assim sem contacto na face enrugadita, mas sempre impecavelmente barbeada e bem cheirosa. 
Um beijinho soprado do fundo das escadas
mas, ao menos, sem telas de entremeio.

Imaginei-o a fazer um beicinho 
comprido e satisfeito,
um balbuciar de incredulidade,
ó filha, vieste ver o pai!

Depois reflecti que era capaz de não ser boa ideia.
Era capaz de insistir para que subisse
e tomasse qualquer coisa.
Ou então fazia questão de descer a escada
e vir retribuir o beijinho bem na minha bochecha.
E ainda era pior.
Ia ter de lhe fugir.
Ou não resistir e abraçá-lo.
E, dessa forma, por amor,
fazer-lhe mal.
Ignóbil paradoxo!

Apaziguei a mente
e disse a mim própria que não valia a pena
por os meninos não estarem cá.
Era melhor irmos os três 
numa outra tarde cheia de sol,
acenar-lhe da janela do carro.
Isso mesmo.
Os três era melhor.

Só depois de todo este arrazoado 
é que me lembrei das restrições à circulação
que o governo impôs neste período de Páscoa.
Não podia ir,
mesmo querendo,
porque moramos em concelhos diferentes.

Passei ilesa toda uma adolescência e juventude
sem o meu pai ter tido que me ir resgatar a uma esquadra,
não era agora que ia arriscar dar-lhe essa alegria!

De maneira que, de cabeça esclarecida
mas o coração insaciado,
sentei-me aqui a escrever estas linhas.
Não é a mesma coisa, pai,
mas é o beijo possível
soprado do fundo das escadas
para não te magoar.




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