Em dias normais,
vejo e escuto tanto,
que me canso mais disso
do que propriamente de dar aulas.
Em dias normais
a menina do segundo ano,
olho azul profundo,
a ser ralhada por...
ter feito xixi nas calças,
pela terceira vez no mesmo dia.
Tento falar-lhe, mesmo sem a conhecer,
e aquelas esferas,
muito azuis,
muito dilatadas,
muito assustadas
a fitar-me,
como se eu pudesse ver lá no fundo
aquilo que a inquieta tanto!
Não consigo!
Vejo vergonha e medo,
daquele instante concreto;
do ralhete das adultas,
que já a mudaram hoje
- não as censurem:
são humanas,
cansam-se,
esgotam-se,
mudam fralda,sim,
várias vezes por dia,
todos os dias,
a uma outra menina
que chegou ao primeiro ciclo
cheia de traumas e sem nunca desfraldar;
com esta é que não contavam,
e há os outros duzentos aos pinchos no recreio,
a atropelarem-se e a esfolar joelhos.
Em dias normais
o menino que tem um achaque
logo após o lanche,
tensão baixa não é, de certeza,
mas está desorientado
e desfalece;
chama-se a ambulância,
vai recuperando,
já fala,
diz aos paramédicos
que não quer ir ao hospital,
que no corpo dele ninguém toca.
E aquilo fica a tilintar-me nos ouvidos,
tanto ou mais do que a possibilidade de diabetes.
Em dias normais
o José não traz lanche;
outra vez
ou ainda.
Sei que há maçãs e pão disponíveis no recreio,
mas ouço-o pedinchar aos colegas
outra vez
e ainda.
Deixo-lhe a fatia de bolo de chocolate
que a Ritinha me reservou do seu bolo de nono anversário
(cor-de-rosa, com unicórnios e arco-íris)
Dói-me a barriga do chocolate que não comi,
do arco-íris que ao José ninguém pinta lá em casa
e das mudas de roupa urinada
que as funcionárias secam no aquecedor.
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