O pior dia da minha vida não foi o dia em que a mãe morreu.
Foi o dia em que tivemos de lhe dizer que tinha um cancro. Eu e a Ana.
Nós as duas, tão desesperadamente sós as duas naquela antessala da enfermaria, sentadas à espera para ir dar uma nova que odiávamos e nos ardia na pele sem expressão. Tão grandinhas que ali estávamos a cumprir a missão.
A Ana a explicar-me ter pedido à médica para estarmos presentes aquando da verbalização da tragédia, para estarmos presentes para enunciarmos a maldita, a pretexto de que a mãe ouvia mal, que se contornasse o protocolo, o dever de informação médico/paciente. Eu a ouvir a Ana e a concordar de aperto na garganta como o dela, de olhos nos dígitos vermelhos do elevador, a porta de metal cinzenta que quase não pára neste piso, a esta hora, os dígitos vermelhos, quadrados, sempre a indicar movimento, as paredes muito imaculadas do branco do hospital novo, a faixa de madeira a meio da parede; a espera longa e dolorosa que não desejo apressar.
Dou razão à minha mana, a mais nova, a pequena, grande, tão grande em todo este processo! - fizeste bem, vamos ajudar, vamos lá estar, vamos "ao menos" lá estar. Neste "ao menos" toda a nossa impotência, toda a rendição, toda a inutilidade prática do nosso desespero e amor.
A médica, não a vejo na minha memória, ela é só uma voz, só palavras secas, factuais e clínicas, que só ouço a espaços e que sei que a mãe não escuta, mas lê nos lábios e nas expressões faciais descontentes das filhas e da doutora de bata branca, "primeiramente suspeita de pneumonia aguda"
Os olhos da mãe,
aflitos,
a procurar os nossos...
"depois indícios tumorais bilaterais"
Os olhos da mãe,
aflitos,
procuram ouvir...
"carcinoma pulmonar"
Os olhos da mãe gritam respostas aos meus e aos da Ana. Os lábios balbuciam "é cancro, não é?" mas ainda sem som.
Nós explicamos, em voz alta (e isto dói muito, como se a humilhasse; como se ao dizê-lo em voz alta lhe dessemos mais força, como se o validássemos, como se o celebrássemos, como se ao pronunciá-lo tão convictamente lhe déssemos existência, como se, enfim, nos tornássemos cúmplices no crime, culpadas, colaborantes e para sempre auto arguidas)
Mentimos-lhe. Minto-lhe eu (porque nesta altura já não acredito numa recuperação) e digo-lhe que vai fazer tratamentos e ultrapassar tudo aquilo, que vai superar e lutar. Depois digo a verdade - que estamos do lado dela e que a amamos muito.
Quem já frequentou um IPO ou acompanhou um doente terminal saberá que, depois disto, muitos outros momentos dolorosos e feios se seguiram até ao triste momento em que a perdemos. No entanto, este foi para mim o pior dia da minha vida. O dia em que tive de anunciar uma doença mortal à pessoa que me deu vida.
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