Bem Vindos ao "Marta à vista", o blog onde podem ler sobre o que a Marta avista e avistar a Marta. Talvez mais aquilo do que isto, se é que não são a mesma coisa!
domingo, 29 de novembro de 2020
Procurar a agulha no palheiro em chamas
sexta-feira, 20 de novembro de 2020
Comprimidinho miraculoso!!!!
uns mais ansiosos que outros,
quando o Francisquinho
(chamemos-lhe assim)
"TixÉr! Tu sabes que eu comecei hoje a tomar uns comprimidos...?"
Parei e olhei para ele.
enfim,
queres ver que foste avaliado?
queres ver que foste medicado?
Penso: ainda bem...
Penso: seria preciso?
E ele:
"Sabes, eu comecei hoje a tomar um comprimido para a inteligência... vai ser bom para mim; eu vou conseguir ficar mais atento na escola...é assim um comprimido para eu ficar mais inteligente, sabes?"
Digo-lhe que sim, que bom, agora vai lá sentar que quero distribuir o teste
e ele ainda, a caminho do seu lugar:
"o problema é que só dá até às quatro da tarde... mas também depois já não faz falta que já não estou na escola..."
Quase me dá vontade de rir, mas há algo de perverso neste discurso...
O teste passa. O miúdo resolve-o.
Penso - isto é fácil, é iniciação, é o primeiro teste de inglês que estás a fazer na vida, és capaz de sacar um Bom ou Muito Bom...
porque vais achar que a nota tem a ver com o comprimido!!!!
Que sorte a do farmacêutico, vai fazer negócio à custa da txitxa!
quinta-feira, 19 de novembro de 2020
Nadas no meio de pandemias
Dias bons são feitos de nadas, no meio de pandemias.
há vacina, não há vacina,
confina-se,
desinfeta-se,
mascara-se e distancia-se
mas
ainda assim
o Pedro teve mais de noventa por cento a matemática
a Maria pratica o twinkle little star na viola d'arco
Cheira a ameijoas com coentros na cozinha
e tudo está certo.
por trás de máscaras com bonequinhos.
domingo, 1 de novembro de 2020
O Pior Dia da Minha Vida
O pior dia da minha vida não foi o dia em que a mãe morreu.
Foi o dia em que tivemos de lhe dizer que tinha um cancro. Eu e a Ana.
Nós as duas, tão desesperadamente sós as duas naquela antessala da enfermaria, sentadas à espera para ir dar uma nova que odiávamos e nos ardia na pele sem expressão. Tão grandinhas que ali estávamos a cumprir a missão.
A Ana a explicar-me ter pedido à médica para estarmos presentes aquando da verbalização da tragédia, para estarmos presentes para enunciarmos a maldita, a pretexto de que a mãe ouvia mal, que se contornasse o protocolo, o dever de informação médico/paciente. Eu a ouvir a Ana e a concordar de aperto na garganta como o dela, de olhos nos dígitos vermelhos do elevador, a porta de metal cinzenta que quase não pára neste piso, a esta hora, os dígitos vermelhos, quadrados, sempre a indicar movimento, as paredes muito imaculadas do branco do hospital novo, a faixa de madeira a meio da parede; a espera longa e dolorosa que não desejo apressar.
Dou razão à minha mana, a mais nova, a pequena, grande, tão grande em todo este processo! - fizeste bem, vamos ajudar, vamos lá estar, vamos "ao menos" lá estar. Neste "ao menos" toda a nossa impotência, toda a rendição, toda a inutilidade prática do nosso desespero e amor.
A médica, não a vejo na minha memória, ela é só uma voz, só palavras secas, factuais e clínicas, que só ouço a espaços e que sei que a mãe não escuta, mas lê nos lábios e nas expressões faciais descontentes das filhas e da doutora de bata branca, "primeiramente suspeita de pneumonia aguda"
Os olhos da mãe,
aflitos,
a procurar os nossos...
"depois indícios tumorais bilaterais"
Os olhos da mãe,
aflitos,
procuram ouvir...
"carcinoma pulmonar"
Os olhos da mãe gritam respostas aos meus e aos da Ana. Os lábios balbuciam "é cancro, não é?" mas ainda sem som.
Nós explicamos, em voz alta (e isto dói muito, como se a humilhasse; como se ao dizê-lo em voz alta lhe dessemos mais força, como se o validássemos, como se o celebrássemos, como se ao pronunciá-lo tão convictamente lhe déssemos existência, como se, enfim, nos tornássemos cúmplices no crime, culpadas, colaborantes e para sempre auto arguidas)
Mentimos-lhe. Minto-lhe eu (porque nesta altura já não acredito numa recuperação) e digo-lhe que vai fazer tratamentos e ultrapassar tudo aquilo, que vai superar e lutar. Depois digo a verdade - que estamos do lado dela e que a amamos muito.
Quem já frequentou um IPO ou acompanhou um doente terminal saberá que, depois disto, muitos outros momentos dolorosos e feios se seguiram até ao triste momento em que a perdemos. No entanto, este foi para mim o pior dia da minha vida. O dia em que tive de anunciar uma doença mortal à pessoa que me deu vida.