Faço coadjuvação numa turma grande, que acolheu um menino particular.
Coadjuvação significa que outro colega dá a aula e eu estou lá para ajudar.
Neste caso, vou dando um empurrãozinho aqui e ali aos meninos com dificuldades, mas sento-me, maioritariamente, ao lado da cadeira de rodas do M e vou monitorizando o trabalho dele a inglês.
Depois de duas ou três aulas, logo percebemos que o M é perspicaz, desenrascado e que tem um vocabulário de inglês que, de momento, prescindiria do meu apoio, mas a verdade é que eu gosto mesmo de estar ali com ele e é ele quem me ensina tanto!
É um menino bem humorado, persistente, que insiste em fazer as suas tarefas sozinho, portanto eu vou acompanhando e vamos arrancando sorrisos um do outro, no nosso cantinho, lá atrás, onde resolvemos os exercícios todos e ainda brincamos muito com uns ímanes que eu trago no estojo.
Na verdade, na mesa ao lado, senta-se um outro, que recebi no ano passado, vindo do Brasil e mal sabia ler. Progrediu muito, mas apesar de estar no terceiro ano, ainda luta com as letras. E outro que também veio daqueles lados do Atlântico e cujos pais trabalham nuns turnos malucos, razão pela qual ninguém lhe vigia as horas de sono e ele vem sonolento para a aula. A colega de carteira, de uma beleza a lembrar ascendência amazónica, esteve ali dois meses a escutar o txitxo sem trazer livros nem cadernos, por mais que apelássemos a que arranjasse, pelo menos, um cadernito qualquer.
Por tudo isto, como se vê, há sempre pano para mangas, embora eu me debruce mais no meu M.
O M era um miúdo como os meus filhos. Há um ano apanhou um vírus e ficou assim. Com a fala algo comprometida, na cadeira, sem mover a mão direita, de fralda.
No outro dia estava a aparar uma ficha para ele colar no caderno e ele, como de costume, pediu-me para ser ele a fazê-lo. Se calhar erradamente, mas com receio que se magoasse, disse-lhe que eu ajudava e que podia pousar a tesoura. Pelo contrário, ficou com a tesoura na mão, a fixá-la algo demoradamente. Estranhei, pois costuma ser muito colaborante.
Insisti que podia magoar-se. Deu voz ao que lhe passava na cabeça.
"Dantes, eu era capaz de recortar umas formas numa folha dobrada a meio e depois, quando se abria ficava assim tudo tipo rendilhado."
Disfarcei. "Sério? Que bonito! E isso é difícil!"
E ele:"Dantes!"
Nunca tinha visto uma tesoura cortar tão fundo.