quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Camisola (pouco) interior

Resultado de imagem para white sweater girl, clipartTransitar de uma escola para a outra, a tentar saborear o calor outonal, mas com a cabeça a martelar mensagens e alertas. Hoje, especialmente, aquela camisola interior

Miro uma montra de esguelha para fugir ao assunto; que giro vestido, dava-me jeito umas sapatilhas destas da moda, agora que ando tanto a pé e aquela saia de pregas, que linda!... mas este mês não convém, este mês foi renovar o guarda-roupa dos miúdos, passam o verão semi-nus e descalços, começa a escola, nada lhes serve, raisparta! Como farão as famílias com muitos... e com menos... e volta-me à cabeça aquela camisola interior

Estavam quase trinta graus; eram três da tarde, quatro?, cruzo-me com as fedelhas no recreio. 
Meto conversa, gabo as sapatilhas de uma. Diz-me que são Sketchers. Gosto, são fashion!, digo-lhe. As outras reclamam atenção, esticam a ponta do pé, e as minhas txitxa?, 
tenho de adorar todas as da roda, vou percorrendo com os olhos: as tuas também são fixes, e estas, pretas, que must! Chega a vez dela e ela ri-se e desculpa-se "as minhas são cagadas" - digo que é normal, são crianças, é de brincar e que faz muito bem em brincar e ser feliz.

Aquilo passa. Vou dar uma aula.  Sem me lembrar mais de nada. Sem ter consciência.

Mais tarde, quando a vejo na aula, reparo

A sala de aula transpira, o sol bate de chapa e está mesmo abafado, apesar das janelas escancaradas. Ela vem ter comigo à porta, aos pinotes por me ver (!) e só aí reparo na 
camisola interior surrada e curta nas mangas. 
Pergunto se não tem calor, se não trouxe mais nada por baixo (às vezes são eles que não têm noção da temperatura, nem discernimento para vestir ou despir de acordo). Diz-me que não e gruda-se num abraço.

A meio da aula, já não me lembro de nada disto e zango-me muito com ela. Porque me pede uma caneta para escrever e percebo que ainda não fez nada nesta aula que já vai a meio. 
E os outros começam de acusa-cristos (que nada me agrada) a explicar que ela tem estojo na mochila, mas não tira por preguiça.
Vou ter com ela, 
averiguar se há ou não estojo 
e só aí, ao espreitar para a mochila muito gasta e muito usada
percebo!

Tem estojo, sim, está ali ao fundo
tem vergonha
não é novo
nem colorido
nem tem nenhuma bonecada de princesa e heróis
do marketing didático  pago a peso de ouro.
Tem vergonha.

De repente, tenho EU vergonha de lhe exigir fosse o que fosse.
De repente, o estojo rima com as sapatilhas "cagadas".
Sapatilhas que são cagadas, não que estão.
De repente, estojo escondido e sapatilhas cagadas
rimam com camisola interior surrada.

E eu não gosto da rima que me martela o cérebro até estas horas da noite.


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