domingo, 28 de outubro de 2018

Alô? Tá lá?

Toca o telefone e és tu.

Atendo, contente, mas não és tu!!!!

É uma voz francófona, a dizer que encontrou o teu telemóvel na MO do Continente
Que me encontrou nos teus contactos como MartaVizinha. 

Sorrio, que de vizinha resta pouco. Sorrio pelas voltas que o destino dá para nos cruzar.
E sorrio porque, das duas... três:
Ou eu estou nos teus Favoritos, primeiríssima dos teus contactos frequentes e fui a última a ligar-te 
(que não abona lá muito pela tua vida social, pois eu creio que há uma boa meia duzinha de dias que te não falo!)
Ou ela andou a bisbilhotar o alfabeto todo até ao eme. Tás tramada, estás na calha para um bom suborno, pois  já te sabe os segredos todos!!!!

Bem, explicar-lhe que já não sou propriamente vizinha porta-com-porta é demasiado complexo. Além disso, na realidade, a minha alma é confinante à tua. Portanto, diga lá então, minha senhora, como havemos de fazer para ajudar a minha menina!

Lembro-me de lhe sugerir que procure nos contactos pelo teu esponjo, que escreva  "marido", que escreva o nome próprio. Falho, aqui, porque tu não lhe chamas pelo primeiro nome, mas pelo segundo. Adiante.
A senhora volta a ligar-me, naquele sotaque enchanté de "ser para os outros, ãh!", mas que non, non non, pas de rien que não encontra marido!!!!
Apetece responder - procure em A de amante ou vá ver em Xuxu, deve ser assim que ela o trata, cá entre nós que ninguém nos ouve!!!


Lá chegamos a um accord, ela diz que ainda tem 50% de bateria e que tem um carregador compatível e que vai colocar a carregar; agradeço, que gentil, muito grata pelo cuidado, vou então arranjar maneira dela telefonar para si própria e combinar consigo como resgatar o telemóvel, muito grata, minha senhora. Pas de tout, pas de tout,ãh! Já me aconteceu a mesma coisa e não tive a mesma sorte e que isto a gente traz as vidas cá dentro, ah, o incómodo, contactos, tudo!

De maneiras, miga, que não te safas! 
O mundo é uma  azeitona 
e, mesmo à distância, 
consigo saber 
que hoje foste comprar cuecas à Modalfa 
(e muitas, que vinhas com as mãos tão cheias que deixaste o telelé!)
que não tens tomado a pastilhinha p'ra lembrança
e que continuas tão atarefada que nem dás por falta do phone!

Se outras razões não houvesse, miga, não apagues ainda o meu contacto da lista. Nunca se sabe quando será a próxima vez que, de Esposende, eu te encontro o telemóvel numa aldeia recôndita de Bragança!
Já não me podes tocar à campainha para pedir sal, 
mas conta comigo para te resolver a vidinha na mesma!
Como vês, o universo já deu provas de que estou cá para isso!


quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Yummi yummi!

São três e meia da tarde.
Está uma brasa estival, 
a sala de aula borbulha, 
eles transpiram. 
Salvos pelo gongo, eles e eu, toca para o intervalo!

Estamos com a sala quase toda ordenada, os materiais guardados, os lanches em riste para ir brincar. Salvo um ou outro, mais atrasado na tarefa final, ou mais lento a arrumar, ou mais curioso com o lanche do que brioso da organização da mesa. 

TíxÉr, tixÉr, a mousse estourou!!!

Ah?!

A mousse do Vítor estourou!

Viro-me, avanço três passos até o local da ocorrência.
Já lá estão duas meninas solícitas a socorrer o Vítor com carradas de lenços de papel e manadas de papel higiénico! 
O Vítor, esse, com um ar desolado - não sei se com mais pena do meu caderno ou do chocolate extraviado, acha que hoje é um dia aziago porque, primeiras, tinha partido os óculos no recreio e segundas tinha desperdiçado a lambiçe por cima do notebook! (caderno)

O caderno!Quanto mais elas limpam, mais espalham! 
Parece que levou com diarreia de elefante em cima!
Mas o que é que passa pela cabeça de uma mãe para enviar mousse de chocolate, com este tempo tórrido, aquilo tem ovos...

Sorrio-lhe para o animar: Deixa lá, fica um caderno docinho! 

terça-feira, 23 de outubro de 2018

May I speak English?

Foi em Setembro, na primeira aula do ano. A gente acha que vinte anos de serviço a pisar salas de aula nos preparam para tudo. Que já nada mais nos há-de surpreender. "Só que não", como eles dizem.

Era uma turma de terceiro ano. Por conseguinte, iniciação à língua. Alguns costumam ter umas luzes, por terem frequentado AEC (aula de enriquecimento curricular) no segundo ano, mas não é forçoso. 

Entro na sala de aula e, ainda sem contacto ocular por estar a pousar pasta e tralhas na secretária, escuto uma voz, algures da secção das carteiras do meio, que fluentemente e de uma assentada me interpela:

"Teacher do you mind if I speak English to you all the time? You are the teacher of English, right? You should be fluent and I could practise speaking to you..."

 Uou, uou, uou, uou, uou! Pára tudo! (penso) O que é isto?
Levanto o pescoço e foco - é um miúdo alto, robusto, mas algo desengonçado.

"How come do YOU speak English so fluently?
Are you American?"
(deduzo americano, pela pronúncia)

"No, I'm not American; I'm Portuguese. I've learnt the language on my own by watching videos! For me that's easy!"

Bem, a coisa por aí foi, mais uns minutinhos de diálogo absurdamente fluído e estruturado para uma aula de iniciação à LE (língua estrangeira) e para um miúdo de nove anos que aprendeu a falar sózinho... 
A sentir-me avassalada por um misto de emoções:
surpreendida, mas a juntar as peças do puzzle e a perceber, logo ali, que este devia ser o menino autista que me fora sinalizado;
absolutamente siderada com a capacidade desta criança;
inassumidamente satisfeita por esta oportunidade - para mim - de desenferrujar a língua, morta de papaguear cores, números e animais de estimação;
e ainda apreensiva, 
quer dizer, 
de pé atrás relativamente às implicações que isto há-de vir a ter na gestão da aula, na resposta às necessidades deste aluno em concreto e na manutenção da sua motivação.

De repente, lembro-me dos outros!
Espalho o olhar em meu redor e vejo um cardume de peixinhos de bocas abertas, uma ninhada de crias assustadas, algumas a ousar balbuciar em guincho semi choroso: "mas... mas... mas, profesoooooooora,  eu não sei in-gue-lê-ê-ê-ês!"

Não se preocupem!
Eu e o meu assistente
(pisco-lhe o olho)
estamos aqui para vos ajudar!

The FIRST!!!!

E,
por fim, 
depois de um bom quarto de hora a socorrer-me da pedagogia,
a caprichar na caligrafia à primária
e a esticar os meus dotes artísticos neste pódio mal amanhado e personalizado para melhor compreensão...
a conclusão triunfal!

Então vamos lá, lindo!
Let's check! Vamos ver se percebeste o que a teacher explicou!
How do you say "primeiro" in English? Como se diz? Qual é a palavra?

Ah! Eu sei, tíxEr, eu sei! 
O PRIMEIRO!

Não, amor, em inglês! Como se diz "o primeiro" em inglês?

(a página do caderno aberta; o esquema escarrapachado à nossa frente; eu a reforçar com o meu indicador em cima do lugar do campeão...)

Pensa bem, como é que a teacher disse, é o champion, é o...o...

O LUÍS!!!!

Rimo-nos os dois. Vencedor e vencida!

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Caligrafia




Como professora, eu AINDA vejo muitas caligrafias.
Ao contrário dos profetas da modernidade, os que advogam que redigir à mão é algo ultrapassado nesta era de avanços tecnológicos e digitais, eu acredito na magia das letras manuscritas. 

Cada caligrafia é única e retrata um pouco da personalidade do seu autor.
Por isso é que costumava brincar com os que têm "letra de assassino" - Olha bem para este texto, vais matar alguém? (Agora já abandonei essa velha piada. Os pequenos não entendem a ironia, não vale a pena.)

Não sou grafologista, 
nem me ponho a interpretar significados ocultos nas dobras dos emes.
Mas aprecio uma página limpinha e aprumada.
Mais, aprecio os reviretes, a proporcionalidade e o equilíbrio dos grafismos. 
Escrever é desenhar. É como uma arte. É uma arte.

Como é sabido, eu gosto de escrever.
E gosto de escrever à mão.
Tenho diversos diários de infância e da juventude. O conteúdo é fraquito, mas agrada-me apreciar a evolução da caligrafia. A minha professora de literatura do décimo segundo ano, uma poetisa ela própria, dizia que a minha letra era toda às rosquinhas; fazia lembrar biscotios!E que, depois de cada parágrafo era preciso respirar fundo! (pela densidade!Muita informação). Dizia que eu escrevia como um furacão, com paixão. Adiante.

O gosto por estas coisas começou por volta da infância tardia ou talvez mesmo na adolescência, altura em que encontrei lá por casa um antigo manual de estilos e técnicas de escrita, provavelmente oriundo da escola comercial que o meu pai frequentou. 
Aquilo era fascinante. 
Páginas e páginas de alfabetos desenhadinhos em diferentes estilos cornucopiados, quem não fizer ideia do que eu estou a falar é favor googlar os seguintes termos: Gótica, Francesa, Cursiva Inglesa, Ronde, etc

Aquilo era
inclinado
entalado entre duas linhas
curvidesenhado
sombreado.

Dava trabalho!
Nessa altura (para aí no sétimo ano?) inspirada pelo didatismo do tal manual do meu pai,
decorei as capas dos meus cadernos com o nome das disciplinas em rebuscadas grafias.
Devo ter alma de copista!

Agora, ao que parece, tudo isso entrou em desuso. 
Menos nas tatuagens. Nas tatuagens, por alguma razão que me transcende, ainda optam por letras algo artísticas. Não é que os tatuadores as saibam grafar. Imprimem a fonte da internet e decalcam na pele, picando por cima. Ou seja, usam tinta, mas não é bem a mesma coisa.
Pelo que investiguei, afinal também há uns livros atuais de caligrafia para adultos que funcionam assim como uma espécie de mandalas para soltar a mente e ficar zen. Chamam-se "Caligrafia para relaxar". Se alguém quiser experimentar isso em mim no Natal, eu prometo dar feedback.

Enfim, eu vejo centenas de letras. Digo vejo porque dizer leio seria abusivo. algumas são tão intrincadas que não se leem - adivinham-se! São futuros médicos (nem isso, que a receita é eletrónica)

Vejo caligrafias esticadas ou redondinhas, garrafais e minúsculas, de toas as formas e feitios. Há as que deixam manchas entre as palavras e eu imagino logo as  marcas da tinta nas mãos- os lados esborratados de azul, a carimbar a página por ali adiante. Outras há que de tão bonitas se tornam confusas.

A minha letra é tão escura e carregada que deixa marcas de relevo no papel. Como Braille. (Muita pressão na caneta, segundo os entendidos, denuncia alta pressão emocional. Sou uma apaixonada!) E é grande, do tamanho da minha miopia e generosidade. A da minha mãe ainda era maior do que a minha: gorda e redondona, cheia, bem ao centro da página - como a mulher extrovertida e autoconfiante que ela era.
Ainda bem que já ninguém me escreve senão por teclas ou estariam sujeitos ao escrutínio analítico de um olho treinado. De qualquer forma, por deformação profissional, continuo a ler nas entrelinhas. 
A propósito, conhecem a caligrafia de quem é importante nas vossas vidas?
Dos vossos pais? Dos vossos irmãos? Dos vossos filhos?
Escrever "à mão" é um ato de intimidade. Uma dádiva.
Não é à toa que os poucos impressos ou formulários  que ainda temos de preencher à mão pedem letra de imprensa!

Já ninguém escreve, digo, manuscreve quase nada.
Nem postais, nem cartas, quase já nem listas de compras.
Chamem-me romântica, retrógrada, saudosista. 
Eu penso que isso é uma pena.