Por vésperas de natal corri tudo atrás de um pedido da Mary: umas sapatilhas com rodas. A coisa estava difícil. Onde é que eu hei-de encontrar tal chinesice? Ora, pois claro! No Chinês.
Aqui, como um pouco por todo o país, não falta escolha.
Portanto, lá estaciono em frente a um grande armazém com uma mega montra iluminada de luzinhas pisca-pisca e repleta de árvores de natal artificiais, fatos de pai natal e de mãe natal de gosto e qualidade duvidosos, tralhas e quinquilharias múltiplas e inenarráveis.
Entro,
na expectativa de lá encontrar o velho atarracado afogado atrás do balcão num mar de plásticos e tarecos artificiais, enterrado naquele cheiro a polímero artificial, compenetrado a assistir a filmes em mandarim no youtube. Preconceito meu.
Engano-me.
Não é que eu estivesse propriamente à espera do estereotipo encarnado do tradicional traje chinês, cetim vermelho debruado a doirados ou seda azul com pássaros e dragões bordados, quiçá até com o bigodinho da praxe... Mas também não estava à espera daquilo. Afinal temos a cabecinha cheia de gavetas escusadas e imprestáveis.
Era um jovem definitivamente asiático, bonito, perfumado, bem vestido. Calça caqui chino, com dobrinhas no fundo, estilo Tommy Hilfigger; pullover justo com aplicações aveludadas nos cotovelos; os colarinhos e as abas da camisa de ganga a sair propositadamente do pullover e em pendant com os sapatinhos de vela azuis.
Também o seu português, e particularmente o seu sotaque do norte, era surpreendente.
Falava fluente e vivamente ao telefone,
sem trocar os erres pelos eles,
trocando- isso sim- os vês pelos bês,
abrindo muito as vogais à norte
e dizendo coisas como
"Que chunga!!" e "Esse trengo que apareça, combinamos umas cenas e bazamos!"
Sorrio,
muralhas de prateleiras adentro, ao ouvir aquele vocabulário juvenil e nortenho na boca dele
(sabem como é, naquelas superfícies as vozes ecoam)
Penso:
segunda geração, certamente nascido e criado em Esposende,
um português de gema
estudaste na nossa secundária
conheces os Lusíadas
leste Pessoa e Saramago
se aqui moras
certamente já foste ao arraial do Santoinho
beber uns canecos, comer umas sardinhas, cantar Quim Barreiros ou até mesmo dançar o vira!
Não encontro as ditas sapatilhas
e, como de costume, já me estava perdendo no barulho visual daquelas prateleiras carregadas de cores e de objectos inusitados que demoro a deslindar, que me implicam esforço visual a focar, um verdadeiro esforço de percepção, esforço sensorial, se é que me entendem. Saio sempre destes espaços com os olhos esbugalhados de esforçar a miopia para ver, para focar e sinto-me também, amiúde, meia nauseada do cheiro a borracha e incenso.
Desisto de procurar.
Vou pedir ajuda.
Atende-me com simpatia, educação e mesmo alegria.
Um grande sorriso e inflexões melódicas na voz.
- Não, já não temos. Houve uma altura em que vendemos muito disso, mas agora já não.
Lamento imenso. Por que não vai ali abaixo, àquela loja nova que abriu ao fundo da rua? É capaz de ter...
- Qual? A do...
Interrompo-me,
engulo a palavra.
Raisparta! Não se diz a um chinês que vamos à loja do Chinês!
Mas como raio é que se diz?
Durante uns milésimos de segundo, hesito.
Procuro a palavra na minha cabeça: venda? mercado? drogaria? estabelecimento?
Nenhuma me parece correcta. Dizemos o chinês para significar uma determinada realidade que todos conhecemos, mas, cum raio, não é muito politicamente correcto designar uma funcionalidade, um negócio com uma nacionalidade ou raça, pois não? Soa xenófobo. Soa discriminatório. A mim, naquele momento, soava-me (pela primeira vez na vida) incrivelmente inapropriado.
-Qual loja?
pergunto para ganhar tempo, e ele:
- A nova, que abriu do outro lado da rua... é muito boa também!
Não me está a ajudar, falta-me a palavra.
Penso que sei ao que se refere, mas parece-me estranho que me esteja a sugerir a concorrência.
Penso ainda: deve estar mesmo a indicar-me outra loja do Chinês, assim como assim eles são todos da mesma família - censuro-me internamente; que disparate! preconceito meu!
Aponto
- Ali?
- Sim. Boa sorte.
- Obrigada. Boas festas.
- Um óptimo Natal e volte sempre.
Entro no carro, a magicar.
Um gajo não diz ao Chinês que vai ao Chinês.
BAZAR!
De hoje em diante vou esforçar-me por dizer bazar. O bazar do chinês. 😆
Aqui, como um pouco por todo o país, não falta escolha.
Portanto, lá estaciono em frente a um grande armazém com uma mega montra iluminada de luzinhas pisca-pisca e repleta de árvores de natal artificiais, fatos de pai natal e de mãe natal de gosto e qualidade duvidosos, tralhas e quinquilharias múltiplas e inenarráveis.
Entro,
na expectativa de lá encontrar o velho atarracado afogado atrás do balcão num mar de plásticos e tarecos artificiais, enterrado naquele cheiro a polímero artificial, compenetrado a assistir a filmes em mandarim no youtube. Preconceito meu.
Engano-me.
Não é que eu estivesse propriamente à espera do estereotipo encarnado do tradicional traje chinês, cetim vermelho debruado a doirados ou seda azul com pássaros e dragões bordados, quiçá até com o bigodinho da praxe... Mas também não estava à espera daquilo. Afinal temos a cabecinha cheia de gavetas escusadas e imprestáveis.
Era um jovem definitivamente asiático, bonito, perfumado, bem vestido. Calça caqui chino, com dobrinhas no fundo, estilo Tommy Hilfigger; pullover justo com aplicações aveludadas nos cotovelos; os colarinhos e as abas da camisa de ganga a sair propositadamente do pullover e em pendant com os sapatinhos de vela azuis.
Também o seu português, e particularmente o seu sotaque do norte, era surpreendente.
Falava fluente e vivamente ao telefone,
sem trocar os erres pelos eles,
trocando- isso sim- os vês pelos bês,
abrindo muito as vogais à norte
e dizendo coisas como
"Que chunga!!" e "Esse trengo que apareça, combinamos umas cenas e bazamos!"
Sorrio,
muralhas de prateleiras adentro, ao ouvir aquele vocabulário juvenil e nortenho na boca dele
(sabem como é, naquelas superfícies as vozes ecoam)
Penso:
segunda geração, certamente nascido e criado em Esposende,
um português de gema
estudaste na nossa secundária
conheces os Lusíadas
leste Pessoa e Saramago
se aqui moras
certamente já foste ao arraial do Santoinho
beber uns canecos, comer umas sardinhas, cantar Quim Barreiros ou até mesmo dançar o vira!
Não encontro as ditas sapatilhas
e, como de costume, já me estava perdendo no barulho visual daquelas prateleiras carregadas de cores e de objectos inusitados que demoro a deslindar, que me implicam esforço visual a focar, um verdadeiro esforço de percepção, esforço sensorial, se é que me entendem. Saio sempre destes espaços com os olhos esbugalhados de esforçar a miopia para ver, para focar e sinto-me também, amiúde, meia nauseada do cheiro a borracha e incenso.
Desisto de procurar.
Vou pedir ajuda.
Atende-me com simpatia, educação e mesmo alegria.
Um grande sorriso e inflexões melódicas na voz.
- Não, já não temos. Houve uma altura em que vendemos muito disso, mas agora já não.
Lamento imenso. Por que não vai ali abaixo, àquela loja nova que abriu ao fundo da rua? É capaz de ter...
- Qual? A do...
Interrompo-me,
engulo a palavra.
Raisparta! Não se diz a um chinês que vamos à loja do Chinês!
Mas como raio é que se diz?
Durante uns milésimos de segundo, hesito.
Procuro a palavra na minha cabeça: venda? mercado? drogaria? estabelecimento?
Nenhuma me parece correcta. Dizemos o chinês para significar uma determinada realidade que todos conhecemos, mas, cum raio, não é muito politicamente correcto designar uma funcionalidade, um negócio com uma nacionalidade ou raça, pois não? Soa xenófobo. Soa discriminatório. A mim, naquele momento, soava-me (pela primeira vez na vida) incrivelmente inapropriado.
-Qual loja?
pergunto para ganhar tempo, e ele:
- A nova, que abriu do outro lado da rua... é muito boa também!
Não me está a ajudar, falta-me a palavra.
Penso que sei ao que se refere, mas parece-me estranho que me esteja a sugerir a concorrência.
Penso ainda: deve estar mesmo a indicar-me outra loja do Chinês, assim como assim eles são todos da mesma família - censuro-me internamente; que disparate! preconceito meu!
Aponto
- Ali?
- Sim. Boa sorte.
- Obrigada. Boas festas.
- Um óptimo Natal e volte sempre.
Entro no carro, a magicar.
Um gajo não diz ao Chinês que vai ao Chinês.
BAZAR!
De hoje em diante vou esforçar-me por dizer bazar. O bazar do chinês. 😆
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