quarta-feira, 5 de julho de 2017

Tributo à minha avó

28/8/98*

     Triste. Muito triste. Infinitamente triste. A alma da avó cansou-se da vida e partiu. Sinto um aperto muito forte no peito, mas mal consigo chorar. A avó morreu e não percebo muito bem o que isso significa. Só sei que dói.

      Note-se que eu não tinha nunca lidado com a materialidade da morte. O carro fúnebre. O caixão que se fecha; o lençol que cobre o corpo. O cheiro a flores na igreja. as condolências de dezenas de familiares e amigos próximos que eu nunca vi. Acho que me prendeu mais tudo isso do que a perda DELA. Como um puto que vai pela primeira vez a um aeroporto e fica fascinado pelos aviões. O fascínio em mim foi espanto e terror.
     Primeiro aquilo a que chamam "velório" - tinha velas, de facto, talvez daí venha o nome. Porque velar pela minha avó era tudo o que não se passava naquele espaço. Não entrei - não tive força. Além do mais, lá dentro falava-se da vida, do trabalho; trocavam-se beijinhos; mostravam-se fotografias e até se atendiam telemóveis. Não se respeitava a minha avó. O seu silêncio. A sua despedida. Fiquei à porta, num cantinho donde a podia ver e rezar. Fechei os olhos para estar com ela pela última vez em presença e lembrei-me de muitos momentos, desde pequenina. Finalmente lágrimas, mas devagar, quentes e calmas, na minha face, como um abraço da avó. Chorei, mas em paz - quase feliz. Um calor interno, uma quase alegria. Fui desperta deste estado-paz por uma estranha que me perguntava a causa da morte, a idade da avó e se era esposa daquele senhor velhinho que ali estava "coitadinho". Por isso a SIC faz milhares de escudos com "Perdoa-mes" e afins: as pessoas têm, realmente, um interesse mórbido pelo sofrimento dos outros. Lá respondi com acenos de cabeça e monossílabos, banhada em lágrimas como convém à situação e à senhora, que aproveitou a ocasião para se sentir um ser humano maravilhoso e uma cristã exemplar, consolando-me (Quem é que precisava de consolo?) com os clichés adequados do tipo "É o que a vida tem de mais certo" e "estava na sua horinha", tudo no tom lamechas que se sabe.
      Que circo! Apetece mandar a pobre senhora à merda. Que raiva! Porque é que se passa a vida a fingir que se sente alguma coisa ou, pior do que isso, a acreditar que se sente alguma coisa?? Não suporto este teatro. Arte, sim, mas não na vida. Não suporto os olhares piedosos que lançam ao meu avô. Ele não é coitadinho: durante anos amou e foi amado por esta mulher excepcional, teve filhos com ela, abusou da paciência dela (e isto é uma redundância relativa ao verbo amar que já usei). Coitadinho? Não. A ser-se rigoroso o avô é um sortudo. Pieguices fortuitas! Compaixão! Ide mas é para casa amar com verdade quem deveis amar, deixai-nos com a nossa dor.
     Beatas. Também me irritam as beatas. Chego ao pseudo velório e uma criatura prestável dispõe-se a rezar um tercinho pela pessoa que ela não conhecia, mas que era, com certeza, uma santa! Mordi os lábios de raiva. Vim cá para fora para não lhe ouvir a voz melosa. No final do "tercinho", começa a metralhar-nos com um discurso catequístico, excertos de bíblia colados à pressão, à mistura com elogios à morta que nem conhecia. Não lhe bato - teve sorte. despeço-a, interrompendo-a com um Boa Noite-e-Adeus gélido. Ainda se demora. Conta a morte do seu paizinho que está no céu. Detesto-a. Haverá sempre assim intrusos nestes momentos sérios? Acabo por perdoar a mulher - é a "profissão" dela - mas encontro, finalmente, o silêncio desejado. É noite e agora só quem te ama está contigo, avó. Não há berros ou pranto, mas despedimo-nos de ti cantando e isso é bom. É um momento confortável. Triste, mas quase de felicidade. porque há paz. Como tu gostas.

     Funeral. Um drama maior. O adeus último. A missa. O cemitério. Já estou surda aos telemóveis a tocar em plena igreja; já não escuto o encorajamento de pessoas que não me conhecem, mas estão solidárias comigo. Só me sinto triste. Só ouço a tristeza do meu pai. E a minha., cá dentro. Também ouço a avó. Os conselhos. As confidências. 
     No final do dia, recupero os risos da avó. A Ana lembra-me do bom humor que herdámos dela e consigo sorrir. Sinto-me bem com essa lembrança: o sorriso da avó. É essa chama que tenho de manter viva dentro de mim. 

*Texto escrito em 98. Recuperado hoje, na minha limpeza à garagem.

1 comentário:

  1. Desta grande SENHORA herdaste os grandes DONS da escrita e da frontalidade. Obrigado, minha filha, por Lhe dares continuidade.

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