quarta-feira, 5 de julho de 2017

Limpar a garagem

Ando há dois dias a arrumar a garagem. 
A garagem é a minha alma remota, as memórias que o meu cérebro não guardou, emoções há muito esquecidas.
E ainda nem abri os diários. (Meeedo).

Do que falo é dos cartapácios da universidade, os dossiers de estágio, as capas de arquivo com apontamentos da faculdade - páginas já muito amarelecidas, com as letras coladas ao plástico das micas e a brindar-me com pó e ácaros para que não ouse folheá-los. Não o faço. Esses dossiers foram em massa para o ecoponto: Fonética e Fonologia; Literatura Inglesa; Estudos Portugueses; Psicologia do Desenvolvimento; Teoria da Literatura; História e Filosofia da Educação; entre outros. 
Trouxe apenas para cima a capa de Linguística, para mostrar aos meus filhos o que era um caderno brioso e organizado. Não deram muita importância. "Porque é que escrevias isso tudo à mão?" Pois! Lixo com aquilo também!
Apesar de eu não gostar de acumular tralha, fiquei um pouco nostálgica ao remexer naqueles pedaços de juventude. Estava ali a aluna marrona e responsável que fui; horas de empenho a queimar pestanas. Enchi-me de racionalidade - quando é que eu vou, alguma vez, voltar a isto? NUNCA! Se, eventualmente algum dia precisar de consultar estas matérias, não é aqui que virei pesquisar. Para além do mais, muito estará desatualizado. Portanto,  enchi dois sacos fortes e livrei-me de tudo.
Guardei apenas o certificado do Prémio de Mérito Escolar. Aquele que me pagava as propinas. Só assim consegui sustentar o curso. Com o meu empenho. Nessa altura, na UM (Universidade do Minho) quem tinha bom aproveitamento era premiado com isenção de propinas. E assim terminei a licenciatura.

A seguir, foi livrar-me de dossiers do professor, registos de avaliação antigos, exames e testes, fotografias de antigos alunos. 
Deitei fora quilos de alunos e dezassete horários laborais equivalentes ao meu tempo de serviço! 
Tantas escolas, tanto trabalho, tantos alunos... disciplinas que já nem existem: Técnicas de Tradução do Inglês; Estudo Acompanhado; programas que se alteraram entretanto. Já trabalhei em todos os níveis de ensino, do 1ºciclo ao 12ºano; com crianças, adolescentes e adultos; ensino recorrente nocturno; tantas cidades corridas: Braga; Bragança; Guimarães (Ronfe); Mogadouro; Macedo de Cavaleiros; Elvas; Vinhais; Vimioso...

Depois encontrei pilhas de cartas. Não li nenhuma. Mal abri essa caixa de Pandora, fechei e decidi guardar. Pensei não tens tempo para isto agora. A missão é descartar. Se leres não conseguirás. Fica.

Encontrei ainda mensagens de amor, num bloco pequenino. Da altura em que o nosso amor era novo e imaturo e eu copiava as SMS para as não perder. Mensagens ridículas, como diria Pessoa, de outra forma não seriam de amor. Arrancaram-me um sorriso. Já crescemos tanto daquele ponto.

Encontrei materiais de imensas acções de formação; as minhas coisas de quando fui em Erasmos para a Bélgica; os cadernos de apontamentos do Mestrado; RESMAS de fichas de trabalho e testes que elaborei; exames de equivalência a frequência;  matrizes, critérios de correcção; grelhas de avaliação...

Comecei a sentir-me cansada só de remexer. Parecia que estava a ver ali a minha vida toda, em papel, a passar-me pelas mãos a um ritmo alucinante. Ocorriam-me pensamentos tristes, por exemplo, já trabalhei tanto, já vivi tanto, estou cansada.

Para não ficar deprimida, encerrei os trabalhos, carreguei os sacos cheios para o ecoponto e lancei com vigor aquelas toneladas de papel  lá para dentro, para nunca mais. No fim, senti-me aliviada e limpinha.



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