Segunda de manhã.
Costuma ser um dia difícil, porque foi fim de semana e a maior parte dos meninos desta turma está institucionalizada. Portanto, quer tenha havido visitas, quer não; quer tenham ido a casa, quer tenham ficado na casa; sinto-os sempre mais agitados nesta do que na outra aula da semana.
Assomo à porta da sala de aula.
O Eduardinho já está no chão, sentado num canto, abraçado a si mesmo, a choramingar. Com alguma insistência minha senta-se numa cadeira e logo ali sei que vai passar a aula toda a baloiçar-se, para a frente e para trás. Desconfio que lê apenas silabicamente e não tem motricidade para escrever ao ritmo dos outros, portanto, quase não trabalha, até porque, metade do tempo está em conflito com eles. Por causa de uma caneta. Ou de um lápis. Ou qualquer coisa assim. Agora nem sei o que foi - quando entrei já estava perturbado...
O Tomás, muito carregadinho de verde no nariz, quase nem me deixa entrar, vem a correr, pendura-se em mim, sempre a guinchar, deixe-me ser eu, deixe-me ser eu, deixe-me ser eu a ver os trabalhos de casa.
Ainda tento acalmá-lo, mas sei que é um menino NEE e que é difícil demovê-lo quando tem uma ideia fixa. Se o contrariar, não trabalha a aula toda. Tento explicar-lhe que seguimos uma ordem e que hoje não é a vez dele, sempre a ser interrompida por: deixa-me? deixa-me? enquanto tento explicar-lhe que temos de escrever o sumário primeiro e depois se verá de quem é a vez.
Deixa-me? deixa-me? Nenhum dos outros parece remotamente interessado na aula, nem parece querer disputar tal privilégio, pelo que permito ao Tomás que vá verificar o TPC, como deseja.
Entretanto, antes mesmo de chegar à minha secretária, vozes que se levantam,um empurrão contra uma mesa e uma cadeira que tomba. Oiço: Te nasça um garrotilho na cabeça... Só tenho tempo de pousar a pasta e correr a apartar dois lá ao fundo. Ameaçam-se e rogam-se pragas de etnia, que ao início estranhava, mas agora já reconheço. "C'os teus mortos" e "Havia de te cortar a cabeça c’más casnás (galinhas)". Estou farta de ouvir dizer estas coisas, cada vez que se zangam uns com os outros; mas de cada vez que os oiço provoca-me um arrepio. É perturbador.
Chego a tempo de levar com a ponta afiada de um lápis numa mão. Agressão de que não era alvo, mas meti-me no meio. Pedem-me desculpa, tratam-me com deferência. "Não era para a senhora, era para aquele filho de um demo!"
Aqui não falamos assim uns com os outros, vamos acalmar, cada um para o seu lugar.
Fico por ali, num compasso de espera, até que serenem. Vou passando um chá. Escutam-me, algo envergonhados, porque me estimam e sabem que me desiludem.
Ânimos amainados. Pego na pasta, chego, enfim, à minha secretária.
O Alfredo e a Suzete trocam impressões sobre as precárias dos familiares, o padrinho de um, o padrasto da outra. Um deseja a vinda, a outra não. Espera que lhe proíbam a saída, porque era mau e bebia muito e agora o namorado da minha mãe é muito meu amigo. Ouço muito mais do que gostaria enquanto tiro os meus materiais da pasta - eu que até sou muito rápida a fazê-lo.
Dirijo-me ao quadro branco e digo-lhes amavelmente vamos lá trabalhar. As canetas estão tão frias que parecem não querer escrever. Como eles, penso. Abro a lição e vou dizendo, mornamente, Come on, kids! Let's work! Tomás get you notebook, anda! Julia sit down and copy the summary! Vamos lá pessoal!
Faltam dois.
O Gabriel mora na barraca ao lado da escola, mas é sempre o último a chegar; antes das nove e vinte não lhe ponho a vista em cima. Depois, quando chega, desestabilizando os outros todos com calduços nos pescoços até chegar ao seu lugar e comentários em alta voz sobre o fim de semana, ainda vai à funcionária tomar as gotas. Quando regressa, volta o reboliço. Leva uns bons dez minutos a sossegar, com muita insistência minha e as gotas a começarem a afagar a hiperactividade.
A Laurinda também não está. Eles dizem-me, aos gritos e em disputa ( a ver quem grita mais alto e me dá as novidades) que ela foi ter com a Dona Eufémia, a funcionária, para pôr o champô. Dos piolhos. Aparecerá quinze minutos antes da aula terminar com a touca na cabeça e um cheiro pestilento, pretexto para os outros todos deixarem de trabalhar outra vez, se é que entretanto já haviam começado...
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